São seis da tarde. Dentro do autocarro estão cerca de 80 pessoas, muitas delas de pé. Para além da cidade a chover lá fora, a única coisa fora do normal no interior do veículo é um cartaz, pequeno para a moldura de cartazes ocasionais que a Carris fornece, que nos informa sobre o referendo de 11 de Fevereiro. Todos sabemos do que se trata, todos assistimos na TV aos lançamentos de livros, blogs e inflamados debates, todos vimos os cartazes, os panfletos que nos chegaram às mãos com Agora Sim! e Não Obrigada. Já nada nos surpreende: estamos habituados ao “circo mediático” que caracteriza cada acto eleitoral em Portugal. No entanto, este cartaz apenas nos diz que “votar é um direito e um dever cívico”. Disso ninguém duvida, mas é este cartaz, com o seu hipotético sol nascente e céu azul, que nos vai convencer a expressar a nossa opinião, a responder “sim”, ou “não”, à pergunta que encontraremos nos boletins de voto?
O Estado Português, representado neste referendo pelo Secretariado Técnico dos Assuntos para o Processo Eleitoral (STAPE) do Ministério da Administração Interna, apela ao nosso voto através de, entre outros meios, um “cartaz anunciador do referendo” (termo oficial), que se encontra afixado em locais e transportes públicos por todo o país. No entanto, estará o Estado, com este discreto cartaz, a cumprir de facto com a sua parte do processo eleitoral? Não deverá um “cartaz anunciador de referendo” ter como objectivos fundamentais não só informar, mas sobretudo cativar e mobilizar a opinião pública – nós, os cidadãos de pé em hora de ponta que até temos mais do que pensar – para o acto eleitoral a que se refere? Não deverão os deveres e o direitos que invoca estar presentes de uma forma mais incisiva na própria mensagem e no discurso que veicula?
Este discurso, construído num cartaz a partir de elementos ortográficos (palavras/tipografia) e iconográficos (imagens/elementos gráficos), deve chamar a atenção dos passageiros e de outros cidadãos, e fazê-los pensar tanto nas suas convicções, como nas suas futuras escolhas. Infelizmente, o cartaz em causa não corresponde de todo aos objectivos propostos: a sua organização formal é no mínimo insípida, a escolha e composição tipográficas são débeis e mal resolvidas em termos de espacejamento e alinhamento, o uso de gradientes cromáticos e do subtil morph – transformação de uma forma para outra feita progressivamente – é despropositado e inconsequente. Este cartaz, da autoria do “técnico de artes gráficas” residente do STAPE (autor de outros cartazes alusivos a recentes actos eleitorais, visíveis em stape.pt) é, na melhor das hipóteses, uma oportunidade perdida.
Em Portugal existem milhares de profissionais – designers de comunicação – que através do seu poder de observação, conhecimento, criatividade e talento veiculam mensagens e discursos de todo o tipo, nos mais variados meios. São estas as pessoas que dão forma a grande parte da nossa paisagem visual – dentro e fora do chuvoso autocarro – e como tal o seu trabalho merece ser reconhecido por todos os portugueses, e não só. Mas mais do que reconhecê-lo, todos nós deveremos ser ainda mais exigentes com o que nos rodeia, com o que nos é comunicado todos os dias. Um exemplo dessa exigência é a iniciativa “Get Out the Vote” da AIGA (associação profissional dos designers de comunicação americanos), que começou após o escândalo dos boletins de voto da Flórida na eleição presidencial de 2000. Sob o lema “Good design makes choices clear” (O bom design esclarece as escolhas), vários dos seus associados conceberam cartazes com um único objectivo: apelar ao voto. Num deles, de um atelier do Maryland, podemos ver, e ler, três palavras e um ponto de exclamação, um único tipo de letra, e quatro cores. Mais nada. A composição é tão clara quanto a sua mensagem, a urgência tão presente quanto necessária.
Que o cartaz do Maryland (todos os cartazes estão disponíveis para download em aiga.org) é graficamente melhor do que o cartaz do STAPE não tenho a mínima dúvida. Mas talvez o mais importante deste cartaz é que é proposto, tanto na forma, como no conteúdo, pelos próprios membros da sociedade civil – designers conscientes dos seus direitos e deveres cívicos – supostamente responsáveis pela comunicação do Estado, com o qual estão insatisfeitos. Tal como nós devemos estar, quando olhamos para o pobre cartaz no interior do veículo que nos leva para casa: se a imagem e a comunicação são formas de legitimação de um Estado, a qualidade daquelas deve estar à altura dos desígnios deste, e não deverão ser entendidas como um mero trâmite burocrático. Além disso, o Estado, e todas as suas instituições, devem ter um papel activo e contribuir significativa e duradouramente para a elevação da cultura visual dos seus cidadãos: devem ser os primeiros a ter essa exigência, e procurar os profissionais certos para a satisfazer.
Para a também norte-americana designer e teórica Katherine McCoy “o design nunca deve estar acima do seu conteúdo”. No caso do cartaz anunciador deste referendo, a situação é perversamente inversa: O acto maior da democracia – o acto de votar – não conseguiu, mais uma vez, ver eleito um interlocutor à sua altura, por parte de quem tinha a responsabilidade de o fazer: o próprio Estado. Se tal tivesse acontecido, talvez tivéssemos saído do autocarro com a sensação de que tínhamos visto algo de significativo.
*Publicado originalmente no jornal Público de 04.02.2007
Comments are closed.