Um futuro melhor é possível através do design e da criatividade. A prova disso chega-nos da África do Sul, onde o mundo do design encontra o resto do mundo, não no auditório de um centro de conferências, mas na nova casa da família Jonkers.
Há exactamente três semanas, no dia 29 de Fevereiro, terminou na Cidade do Cabo mais uma edição de uma das mais importantes congregações da comunidade mundial do design e da arquitectura. A Design Indaba – que significa precisamente congregação em zulu – começou por ser apenas uma conferência dedicada ao design. A sua primeira edição teve lugar em 1995, um ano após o dealbar da “nova África do Sul” democrática, plural e optimista no futuro. Ravi Naidoo, o seu carismático fundador (que foi ainda o impulsionador da candidatura do país ao campeonato mundial de futebol de 2010), explica o porquê desta iniciativa: “A ideia de falar de design logo após as primeiras eleições democráticas foi na altura considerada esotérica e frívola. ‘O que é que um país do terceiro mundo tem a ver com design?, perguntavam-nos então. ‘Os nossos assuntos do dia são água, saneamento básico e habitação’. A isso respondemos que, na nossa opinião, esses eram também assuntos que tinham a ver com o design. Mas mesmo assim olharam para nós com estranheza.”
13 anos depois, a Indaba é hoje uma “congregação da criatividade” de referência internacional. A começar pela conferência de três dias, cujas entradas (à venda entre o equivalente a 350 euros para o bilhete normal, e 80 euros para preço de estudante) esgotaram com duas semanas de antecedência. Mais de 2100 pessoas (das quais 25% estrangeiras, número que tem vindo a crescer a cada ano) vieram este ano à Cidade do Cabo para assistir aos mais de 30 oradores de todo o mundo, juntando celebridades mundiais a novos talentos sul-africanos: designers de automóveis, interiores, jóias, comida, computadores, robots, cartazes, exposições, sinalética ou logotipos, arquitectos de informação, edifícios e sistemas interactivos, antropólogos, peritos em “lifestyle” e tendências, e um DJ. Mas a Indaba é agora mais do que uma conferência de luxo: o “universo Indaba” é hoje composto também pela Design Indaba Expo (a principal feira de design e de moda da África do Sul), a revista Design Indaba, um programa de palestras, “workshops” e “masterclasses” e muitos outros projectos que vão sendo lançados a cada ano. Tudo isto faz parte de um todo financiado a 80% por patrocinadores privados, apoiado pelos principais meios de comunicação social do país e pelo governo regional.
Um outro mundo existe
Pode parecer à primeira vista que tudo isto se destina a uma pequena e bem-sucedida comunidade de designers e outros profissionais viajados, educados e afluentes, que se reúne na mais europeia das cidades africanas para uma “semana global de design” em pleno Verão meridional. E com efeito não estamos longe da realidade. Num país de 50 milhões de habitantes que se dividem entre 79,6% de africanos negros, 10% de brancos, 2,5% indianos/asiáticos e 8,9% de “mestiços” (o público da conferência não reflectia estas proporções), e onde um quarto da população não tem emprego, 17% não sabe ler, 18% está infectada com HIV e 11% vive com menos de 1 dólar por dia, uma “celebração do design” pode parecer de facto um acto frívolo e irresponsável, num país que tem à partida mais com que se preocupar. A África do Sul é ainda – não nos enganemos – uma nação de fracturantes desigualdades sociais e raciais, que continua a sarar as feridas de décadas de “apartheid”. É hoje afectada por uma crescente instabilidade política e social e por uma gravíssima crise energética, que faz com que partes das suas cidades – e das suas minas – sejam “apagadas” durante várias horas quase todos os dias. Sabendo destes factos, estarão os “assuntos do dia” da África do Sul a ser realmente tratados pelo design, e pela Indaba? Ou será que os cépticos de 1995 tinham razão?
Podemos encontrar resposta a esta pergunta num sítio totalmente diferente do Centro de Convenções da Cidade do Cabo, onde decorre a Indaba. Freedom Park é um dos 175 “povoados informais” (eufemismo local para bairro de barracas) da cidade, ficando a 40km do seu centro. Esta comunidade de 1500 habitantes ocupou em 1998 o terreno destinado a uma escola dentro da “township” (termo usado durante o “apartheid” para denominar comunidades destinadas a não-brancos, das quais Soweto, ou “SOuth-WEst TOwnships”, se tornou a mais famosa) de Mitchell’s Plain, uma das maiores da região. 74% da população de Freedom Park está desempregada e dependente de apoio do Estado. A pressão demográfica é enorme: muitas famílias (com uma média de 5 pessoas por agregado) partilham o mesmo quarto ou barraca, fazendo com que condições básicas como saneamento, acesso a água potável e cuidados de saúde se deteriorem de dia para dia. A comunidade tem contudo vindo a ser “urbanizada” nos últimos anos, como parte de um programa de desenvolvimento governamental. Além de implementado um plano urbanístico para a zona, têm sido feitos esforços para encontrar tipologias de habitação adequadas às necessidades dos seus habitantes, entre os quais encontramos Olga Jonkers, uma mãe de 6 filhos casada com um pedreiro desempregado.
10×10 = 100 soluções de habitação
A falta de habitação é um dos principais problemas da jovem democracia sul-africana. Ao longo dos anos, vários planos têm sido postos em prática para o resolver: desde as chamadas Casas RDP (Reconstruction and Development Programme, ou Programa para a Reconstrução e Desenvolvimento do Estado) a iniciativas privadas de carácter filantrópico – como as desenvolvidas pelo Fundo Niall Mellon, que desde 2002 tem construído, recorrendo a mão-de-obra voluntária e caridade irlandesas, centenas de casas em “townships” por todo o país, incluindo Freedom Park. É aqui que entra o design, e a Indaba: em 2007, e como parte da celebração da sua 10ª edição, Ravi Naidoo lançou o seu mais ambicioso projecto. Chamado 10×10, desafiou arquitectos e designers de renome internacional que tinham já falado na conferência (como Shigeru Ban, Thomas Heatherwick, Lindy Roy ou Tom Dixon) para, trabalhando com arquitectos sul-africanos, criarem soluções inovadoras de habitação social, que serão construídas em Freedom Park. Da “conversa do design” passou-se então à “acção do projecto”: um total de dez duplas de arquitectos e designers começaram imediatamente a trabalhar à distância, e em regime “pro-bono”, em projectos de casas cujo orçamento total não poderá passar os 65 000 Rand (pouco mais de 5000 euros). A iniciativa tem tido vários obstáculos, como a escassez de matérias-primas e súbito aumento de preço dos custos de construção causados pelo “boom” construtivo que o país vive devido ao Mundial de Futebol de 2010 – 10 novos estádios e infra-estruturas várias a isso obrigam. Apesar disso, o objectivo inicial de construção de 10 casas – uma por cada dupla – foi logo ultrapassado pela Indaba, que subiu a parada para 10 casas – uma rua – por projecto. De todas as propostas apresentadas, apenas uma foi até agora considerada capaz de avançar, por cumprir a legislação, usar materiais já homologados e estar dentro do orçamento previsto.
Uma casa de sacos de areia também é uma casa
O projecto em causa, e em construção, é da autoria de Luyanda Mpahlwa. Este arquitecto é o líder do gabinete MMA Architects, autores da extensão do aeroporto da Cidade do Cabo e da embaixada sul-africana em Berlim. Embora tenha sido “emparelhado” com o conhecido arquitecto britânico Will Alsop, as duas equipas não se entenderam. Os MMA seguiram então sem Alsop na definição da tipologia de habitação, tendo em conta questões como criação de urbanidade, uso do espaço público e coesão social. Dedicaram porém a maior parte da sua atenção e trabalho à escolha de uma solução construtiva adequada. A sua primeira preocupação foi responder às expectativas dos futuros moradores: pessoas que viveram toda a sua vida em barracas feitas de qualquer coisa que conseguiam encontrar não iam querer mudar-se para uma casa “alternativa”, “de arquitecto”. Uma casa para elas – como para tantas outras em todo o mundo – é feita de tijolos e cimento, tem um telhado de duas águas, portas e janelas. Mas existirá uma solução melhor, mais adequada às suas necessidades, com menores custos e menor impacto ambiental? A resposta surgiu sob a forma de um método construtivo assente em sacos de areia, chamado EcoBeam. Uma patente sul-africana, este método usa sacos de geotecido cheios de areia como elemento principal de construção, e reúne múltiplas vantagens: além de uma extraordinária estabilidade térmica (fazendo as casas quentes no Inverno e frescas no Verão), possui uma grande resistência ao vento, à chuva e ao fogo; é, devido à sua massa e peso, extremamente sólido e seguro. A sua construção e implementação no local não necessita de electricidade, nem requer mão de obra especializada: a simplicidade deste método de aprendizagem rápida faz com que toda a comunidade – sobretudo as mulheres – possa estar envolvida na construção, criando um sentido de partilha, de pertença e de contribuição para um bem comum. As 10 famílias que ficarão com as primeiras casas – entre as quais se encontra a família da Mrs. Jonkers, cuja casa será mesmo a primeira a ser construída – não viverão em casas de tijolos e cimento, viverão em casas ainda melhores. Cada casa foi atribuída a uma família num sorteio realizado pela comunidade de moradores de Freedom Park. Esta comunidade, construída e liderada por mulheres, tem trabalhado em estreita ligação com a Indaba na identificação de problemas, necessidades e expectativas das pessoas em relação a esta iniciativa: não se quis aqui fazer apenas “aterrar” casas “de arquitecto” no meio de um bairro de barracas, mas sim fazer a diferença nas vidas destas pessoas. Para tal, o projecto dos MMA Architects, como todos os outros, será entregue ao ministro da habitação como parte de um “manual de utilizador” que irá oferecer soluções e protótipos “open-source” para o futuro. Este pode ser por isso apenas o primeiro passo de uma revolução na habitação social para a África do Sul, mas também para outras comunidades e países com problemas semelhantes noutros pontos do globo – nos seus dois hemisférios.
O optimismo triunfante
Tudo isto levanta inúmeras questões, que começaram por ser colocadas, e discutidas, num “workshop” de jornalismo de design organizado pela Indaba (onde o Ípsilon esteve presente), que precedeu a conferência e cujo principal objecto de trabalho foi a iniciativa 10×10. Serão estes projectos novas “Maisons Tropicales” (a casa modernista de Jean Prouvé, projectada para as colónias francesas nos anos 50 e “celebrada” recentemente pela artista portuguesa Ângela Ferreira) do “hipermodernismo” global? Como é que a comunidade de Freedom Park irá responder às experiências – e às expectativas – das famílias com casa nova e as que não tiveram essa sorte? De que forma está a ser gerida a relação de poder e notoriedade entre arquitectos e designers “internacionais” com os ateliers locais? Quais as verdadeiras mais-valias dessa relação? Será o 10×10 não mais do que uma bem-intencionada manobra de marketing e comunicação? Como estarão, daqui a 10 anos, estas casas e seus moradores? Alguém se interessa por isso?
Como em 1995, os cépticos continuarão a cumprir o seu papel de pôr em causa o notório optimismo da Indaba – o que talvez seja o mesmo que dizer o eterno optimismo do design e de outras áreas “do projecto” – e das suas várias iniciativas em prol do reconhecimento da criatividade como motor económico, social e cultural de uma nação. Foi com esse optimismo que, na manhã do dia 1 de Março um grupo de oradores da Indaba, jornalistas estrangeiros e convidados visitaram Freedom Park, com o intuito de ver a evolução da primeira casa a ser construída – a casa da família Jonkers – menos de uma semana após o assentar da primeira pedra, ou melhor, do primeiro saco. E é com essa disposição que hoje mesmo, Sexta-Feira Santa, Mrs. Jonkers e a sua família se mudam para a sua nova casa. Afinal, o design tem hoje, como sempre, tudo a ver com os “assuntos do dia”.
Publicado originalmente no suplemento Ípsilon do jornal Público de 21.03.2008
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