Roger Ball, Caçador de Cabeças Chinesas

 

Retrato de um dos participantes, 31–50 anos, Pequim
Retrato de um dos participantes, 31–50 anos, Pequim

O designer canadiano Roger Ball tem uma missão: resolver o problema de conforto das cabeças chinesas. Tudo aconteceu por causa de um capacete de snowboard.

Em 1997, o designer canadiano Roger Ball recebeu a notícia de que o capacete de snowboard que tinha projectado para a empresa Burton Snowboards não estava a vender como seria de esperar no Japão. Uma má notícia para ele, mas sobretudo para a marca, pois o mercado japonês é, a seguir à América do Norte e à Europa, o terceiro maior mercado mundial para equipamento de desportos de inverno.
A principal causa para esse insucesso era o facto de o capacete causar dores de cabeça aos seus utilizadores, que se queixavam também de este não se ajustar adequadamente às suas cabeças. Isto intrigou Ball e levou-o a iniciar uma investigação sobre a própria forma das cabeças asiáticas, após algumas constatações simples: do apertado equipamento de snowboard no Japão aos capacetes dos motociclistas no sudeste asiático, alguma coisa naqueles objectos não estava a funcionar para aquela zona do mundo.

Um mundo, uma medida?
Roger Ball dedicou a sua carreira de mais de 20 anos a projectar equipamento desportivo e de segurança, tendo criado, no seu atelier Paradox Design, vários produtos de grande consumo para marcas como a Nike, Fisher-Price, ou Bell Sports. Compreendeu, então, a causa para este problema de todo um continente: a forma de uma cabeça asiática é simplesmente diferente de uma cabeça caucasiana, o que é o mesmo que dizer de uma cabeça ocidental. Vista de cima, é mais redonda e menos oval; vista de lado, a nuca dos asiáticos é no geral completamente plana, não possuindo a saliência óssea occipital que serve, muitas vezes, de apoio ou estrutura para capacetes e muitos outros equipamentos usados na ou à volta da cabeça.
Chapéus, óculos, máscaras e viseiras protectoras e outros produtos como telemóveis e auscultadores têm vindo a ser pensados, projectados e produzidos industrialmente ao longo de décadas, e foram inicialmente criados tendo em conta a população ocidental, a partir de dados recolhidos na Europa e na América do Norte.
Roger Ball tentou procurar dados antropométricos que tornassem possível a concepção de equipamentos que servissem as necessidades dos consumidores do seu cliente asiático. Mas não demorou muito a aperceber-se de que essa pesquisa e medição nunca tinham sequer sido feitas.

Mais de 1,3 mil milhões de cabeças
Foi então que iniciou o percurso que o levou em busca desses dados. Começou as primeiras investigações em 2003 na Ontario College of Art & Design, em Toronto, mas foi apenas depois de receber um convite para leccionar numa universidade em Hong Kong que conseguiu aliar a sua paixão pelo ensino a esta sua nova missão: resolver o problema de conforto, e de mercado, das cabeças asiáticas.
Sabendo que nem todos os asiáticos são iguais (do Japão ao Laos, da Indonésia à Mongólia, da Coreia do Sul à Birmânia as diferenças nas suas feições, dimensões e características físicas são abissais), Ball elegeu a China como o seu objecto de estudo. Afinal, este é não só o país mais populoso do mundo mas também o maior mercado da Ásia para qualquer tipo de produtos.
Mas se o mercado é tão grande, como se consegue explicar que durante tanto tempo capacetes e outros produtos foram sendo produzidos sem terem em conta, em algum momento, as suas medidas? Por que razão empresas, instituições ou mesmo governos nunca se preocuparam com isso? Ball arrisca uma resposta: “Essa é uma das grandes incógnitas deste projecto. Historicamente, as nações ocidentais apenas faziam este tipo de pesquisa quando iam para a guerra e necessitavam de meter homens em uniformes, tanques, ou aviões – os jactos de combate não vêm em S, M ou L! Quase todos os estudos foram custeados pela força aérea dos EUA, pelo exército Britânico, etc. Talvez a natureza pacífica da China tenha sido um obstáculo.”
Em tempo de paz e de progresso económico, os motivos da China para medir os seus mais de 1,3 mil milhões de habitantes são outros. É assim que nasce, em 2006, o projecto SizeChina: com o objectivo final de construir uma base de dados de formas de cabeça chinesas estatisticamente correctas, esta ambiciosa iniciativa pretende primeiro responder a uma necessidade de um mercado em exponencial expansão, criando produtos que melhor se adequam às necessidades dos seus consumidores. Mas procura também ir ao encontro de uma vontade do governo da Região Administrativa Especial de Hong Kong (e do governo central da China) de “conhecer melhor o seu povo” – daí ter apelidado o seu apoio à iniciativa como “Perfect Fit China” (Medida Perfeita para a China).
Com sede no Asian Ergonomic Lab da Hong Kong Polytechnic University, de que Ball é director, o projecto SizeChina conta ainda com parceiros de investigação na Europa e América do Norte, e reúne investidores e interesses empresariais e governamentais. Foi rapidamente montado e posto em acção: como tudo o resto na China, não há tempo a perder, nem vontade de esperar.

14 Pontos por Cabeça. Foto: SizeChina
14 Pontos por Cabeça. Foto: SizeChina

6 Cidades, 14 Pontos, 2000 Faces = 1 Cabeça
Ao longo de 18 meses de trabalho, entre 2006 e 2007, foram conduzidas acções de medição e recolha de dados na capital chinesa, Pequim, e nas cidades de Cantão, Hanzhou, Lanzhou, Chongqing e Shenyang.
Cada uma destas acções, feitas em parceria com universidades ou indústrias locais com experiência em pesquisa de factores humanos, envolveu o transporte do sofisticado e frágil equipamento de digitalização através de milhares de quilómetros para cada um dos seus remotos destinos. Cerca de 2000 voluntários entre os 18 e os 70 anos participaram de uma forma entusiástica nestas acções estando, diz Ball sem qualquer traço de ironia, “plenamente cientes do facto de estarem a dar o seu contributo a bem da grande nação chinesa”. Preenchidos os questionários, medidas as cabeças com um scanner laser 360º e registadas as localizações de cerca de 14 pontos da cabeça e da face, como a ponta do nariz, as maçãs do rosto ou a extremidades das órbitas, todos os dados foram trazidos de volta para Hong Kong, onde começaram no Verão passado a ser processados e analisados. Constituem, em primeiro lugar, modelos digitais e físicos para uso dos designers e da indústria – chineses e não só –, e dos investigadores no meio académico internacional.

 

Scan de um dos retratados © SizeChina
Scan de um dos retratados © SizeChina

Usando a rede de instituições parceiras do projecto, Roger Ball começou já a disponibilizar estes dados de forma gratuita a outras instituições: “Tenho estado a trabalhar com o National Research Council of Canada na análise dos dados para mostrar as diferenças entre o Oriente e o Ocidente de uma forma cientificamente mensurável. Planeio trabalhar em três projectos a partir desses dados: as diferenças entre Oriente e Ocidente, as diferenças entre seis províncias chinesas, e as diferenças entre homem e mulher. Já disponibilizámos as versões ‘beta’ de teste de digitalizações seleccionadas para gabinetes de design em todo o mundo, e estamos numa fase de testes para ver como elas funcionam num contexto de projecto.”
Além destes modelos, o produto mais visível será uma linha de formas de cabeças geradas a partir da análise estatística dos dados recolhidos, compósitos que sumarizam as medidas de adultos entre os 18 e os 70 anos, sem ter em conta as diferenças de género. Estas “cabeças chinesas médias” podem ser adquiridas na sua versão electrónica, ou na sua versão física, e o primeiro conjunto de 10 formas de cabeça estarão à venda em breve, respondendo a frequentes solicitações de todo o mundo.

Modelos de Cabeças produzidas com base em dados antropométricos. Foto: SizeChina
Modelos de Cabeças produzidas com base em dados antropométricos. Foto: SizeChina

As novas medidas do mundo
Em 2008, já é possível olhar para trás e reflectir um pouco sobre as várias dimensões do projecto SizeChina. O que começou com o desejo de responder a um simples problema de equipamento desportivo tornou-se num complexo projecto de medição e análise da maior nação do planeta, levantando várias questões que vão muito para além do capacete de  snowboard que 10 anos antes Roger Ball quis redesenhar (e que continuará muito provavelmente à espera de dados antropométricos adequados aos seus utilizadores asiáticos). Afinal, o impacto do trabalho de um designer, e do próprio processo de design, pode ser bem maior e mais significativo do que inicialmente previsto.
“As implicações culturais do SizeChina são mais uma prova de que a China está rapidamente a adquirir um estatuto de primeiro mundo… não tendo mais que sofrer do desconforto causado pelos dados, e produtos, ‘herdados’ do Ocidente.” Ou seja, esta é mais uma prova da autonomia do “resto do mundo” em relação ao “Ocidente”, cujas sucessivas superpotências impuseram ao longo dos séculos as suas doutrinas, verdades e, em última análise, medidas, a todos os “outros”. Hoje, e embora a pergunta tenha sido formulada no Ocidente, a resposta vem do Oriente: “A coisa mais interessante da minha investigação é que esta tem mostrado que há uma grande lacuna também no Ocidente em relação a dados resultantes desta ‘nova  antropometria’. Encontro-me na vanguarda em termos de tecnologia e de processos que ainda estão na sua infância. As empresas europeias certamente necessitarão desta informação… Grande parte dos dados que existem hoje têm mais de 40 anos, e foram realizados muito antes das tecnologias de digitalização que estão hoje disponíveis.”
Depois da China, Roger Ball já tem planos para um SizeIndia e, quem sabe, um SizeAfrica.

www.sizechina.com

Publicado originalmente no suplemento Ípsilon do jornal Público de 08.02.2008


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