Embora imbuídas do espírito, do gosto e do discurso do coleccionador, a colecção e a programação do MUDE estão exclusivamente nas mãos da sua primeira e longeva directora. Bárbara Coutinho é a curadora de mais de metade das exposições. Escolhe, sozinha, todos os curadores e colaboradores externos e também, sem debate ou argumentação, o que acrescentar a esta colecção pública.
A nomeação de Rita Rato para o Museu do Aljube gerou um salutar debate sobre a direcção de museus públicos em Portugal para o qual pretendo contribuir com algumas observações e perguntas sobre outro museu de Lisboa: o MUDE.
O primeiro museu do design criado em Portugal abriu em 1999 no Centro Cultural de Belém (CCB) com uma exposição cujo título – Luxo, Pop e Cool – definiu o espírito de um museu público assente numa colecção privada. Este “recheio de casa” de (novo-)rico, adquirido pelo corretor da bolsa Francisco Capelo e composto por peças de mobiliário, vestuário e outros objectos extraordinários, afirmou um discurso sobre o design enquanto exercício de estilo, expressão de génio individual e manifestação de estilo de vida. A originalidade e a exclusividade das suas “peças,” ou “obras”, bem como a celebridade dos seus “autores”, ecoavam a atitude frivolamente pós-moderna e neoliberal de tantas outras lojas, galerias, revistas, eventos e manifestações “de design.”
Com a astúcia de um especulador, em 2002 Capelo vende as suas compras por 6,6 milhões de euros ao então presidente da Câmara de Lisboa, Pedro Santana Lopes. Em 2006, investe Bárbara Coutinho, mestre em História de Arte Contemporânea e Coordenadora do Serviço Educativo do CCB, da tarefa de encontrar uma nova casa para a sua colecção. Com Carmona Rodrigues, considera-se o Pavilhão de Portugal e o Palácio de Santa Catarina, mas é com António Costa, eleito em 2007, que Coutinho okupa a antiga sede do Banco Nacional Ultramarino e em 2009 abre o MUDE – Museu do Design e da Moda Coleção Francisco Capelo.
Segundo a presidente da EGEAC, o Museu do Aljube dispõe de um Conselho Consultivo e uma “equipa com sólida formação académica e científica” que apoiarão a nova directora na sua comissão de serviço de dois anos. O MUDE é o único museu municipal que não pertence à EGEAC. Coutinho ocupa o único cargo de direcção do museu. Sem comissão de serviço e em regime de avença, acumulando este cargo com o de professora auxiliar convidada do Instituto Superior Técnico. Não dispõe de uma equipa cientificamente qualificada ou autónoma em termos executivos. Nem de um Conselho Consultivo; apenas de um Conselho de Gestão cuja composição é publicamente desconhecida e que segundo Capelo foi ultrapassado várias vezes.
Embora imbuídas do espírito, do gosto e do discurso do coleccionador, a colecção e a programação do MUDE estão exclusivamente nas mãos da sua primeira e longeva directora. Coutinho é a curadora de mais de metade das exposições organizadas pelo museu. Escolhe, sozinha, todos os curadores e colaboradores externos. Escolhe também, sem debate ou argumentação, o que acrescentar a esta colecção pública – contrariando a diligência, internacionalmente comum, de contar com comités de curadores e estudiosos que determinam critérios e objectivos para a aquisição, ponderada e transparente, de resultados e registos da prática do design.
No MUDE, exposições hagiográficas de arquivos e espólios de designers portugueses adquiridos para a colecção reflectem a adesão pessoal a uma história do design assente numa genealogia de heróis ou pioneiros, bem como uma obsessão com a definição de um cânone ou de uma identidade nacional no design. Embora popular entre os (poucos) autores homenageados – não obstante estas aquisições assentarem mormente em doações pro bono –, a sua é uma forma conservadora e acrítica de abordar e divulgar uma actividade eminentemente colectiva, complexa, multidisciplinar e social.
A esfera pública do design em Portugal, definida por uma classe profissional desorganizada e precária, um ensino e uma investigação desconexos e uma escassez de publicações e de outras instituições próprias, sofre há muito de uma debilidade crónica. Desde a extinção, em 2013, do Centro Português do Design, criado em 1985 pelo Ministério do Comércio e Indústria para promover o design e representar o país em instâncias internacionais, sofremos também de um vazio institucional.
O MUDE tem mostrado a ambição de preencher esse vazio. Mas exemplos recentes, como a gestão do concurso de identidade visual da quarta Presidência Portuguesa do Conselho da União Europeia, encomendada ao museu pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros e muito criticada pelos designers participantes, ou a iniciativa Design em São Bento, cuja curadoria de Coutinho é mais um rechear de casa do que uma exposição sobre o papel do design na sede portuguesa da democracia, provam que ambição e qualificação não são a mesma coisa.
Interajo com o MUDE desde 2007: como um dos editores do livro Fabrico Próprio, como crítico de design (tendo numa recensão publicada em 2010 na Arte Capital expressado frustração com a sua curadoria, mas também esperança no seu futuro), como docente universitário e como curador de uma das suas exposições. Conheço bem o modus operandi, as forças e as fraquezas da sua direcção.
Reconheço também o défice democrático que a configura. Um défice comum a outras instituições carentes (mas nem sempre) de recursos humanos e materiais, manifesto no improviso, na arbitrariedade e na opacidade que pautam a sua gestão, bem como numa ausência de escrutínio que contrarie o instinto de autopreservação dos seus gestores. Mesmo quando confrontados com protestos públicos do seu fundador e dos seus trabalhadores, a anuência e a inacção perante a excepcionalidade institucional do MUDE, demonstradas por sucessivos directores municipais de Cultura, vereadores e presidentes da Câmara Municipal de Lisboa, reiteram e até reforçam este défice democrático. Até quando?
Como concordarão as directoras do Museu do Aljube e do MUDE, a crítica, o debate e o escrutínio são as melhores formas de reforçar a esfera pública e a democracia das nossas instituições. Convido-as então a contribuir para este debate respondendo às Cinco Perguntas Essenciais da Democracia do histórico parlamentar britânico Tony Benn: 1. Que poder detém? 2. Onde o obteve? 3. Exerce-o ao serviço de que interesses? 4. Responde perante quem? 5. Como nos podemos ver livres de si? As suas respostas deverão pautar as nossas acções. Em prol da democracia.
Artigo de opinião publicado na edição do dia 25 de Julho de 2020 no Público.