Promessas Expectativas e Resultados Experiências
Territórios do Design Contemporâneo em Portugal
O filme Enzo Mari for Artek: Homage to Autoprogettazione é um dos mais cândidos, cativantes e importantes testemunhos sobre a carreira de um designer contemporâneo a que podemos hoje ter acesso. Parte registo documental, parte filme promocional, esta curta-metragem de 18 minutos realizada em 2010 está disponível na internet desde 2012 (1). Nela podemos ver o designer italiano Enzo Mari, então com 88 anos, no seu atelier em Milão. Mari é um dos grandes. Ele pertence ao pequeno e selecto grupo de arquitectos e designers italianos, ou melhor dizendo arquitectos-designers italianos, que contribuíram para a reconstrução da Itália do pós-guerra, mas também para fazer do design italiano uma referência, uma norma, uma marca, um desígnio, um mito. Mas também fez parte dos que questionaram, provocaram e ultimamente assistiram à transformação e declínio de uma ideia de design: a sua. Marxista ferrenho, é conhecido há anos por gritar Il design è morto – o design está morto. Aliás, há anos que Mari é conhecido por gritar, gritar muito, e dizer sempre mais ou menos a mesma coisa: de que há demasiados designers, que as escolas de design não servem para nada, que o design está entregue ao marketing, que o design deixou de se preocupar com o aquecimento global, a explosão populacional, ou as condições de trabalho nas fábricas do terceiro mundo. Mari é, de há uns anos para cá, e apesar dos mais de 2000 produtos e projectos que criou ao longo da sua carreira, o perfeito estereótipo do velho rabugento, de um provocador tão incendiário quanto contraditório e inconsequente.
Todavia, neste pequeno filme ele fala pausada e delicadamente. Começa for falar sobre a justeza da forma da natureza – uma mão, um vulcão – e de como a profissão do design, e mesmo o seu ensino, esquece essa justeza para se render ao único motivo de fazer um projecto: fazer algo diferente. Diferente independentemente da necessidade ou da razão, o que leva à criação de coisas sem essência ou lógica para além da forma. Para Mari, a cada coisa corresponde uma forma – tudo o resto é formalismo, em geral usado como “embelezamento ignorante e incapaz.” Levados a acreditar que a carreira, ou o ethos de Mari se baseia na procura de uma essência da forma e na rejeição do formalismo, continuamos a ver e ouvimos que em 1968 ele foi convidado a projectar um sofá-cama. Primeiro disse que não. Odiava todos os sofás-cama que existiam no mercado, sofás vulgares, obscenos, que ao chegar à noite se tornavam, com grande esforço, em camas. Mas depois pensou melhor, pensou que o mundo não é só feito de ricos que vivem em grandes casas ou apartamentos, que a maioria das pessoas vivem em duas divisões. E pensou então num sofá que se tornasse numa cama através de uma operação “rapidíssima” e “muito fácil”, um objecto económico e portanto acessível a pessoas com poucos recursos, que tivesse a melhor qualidade possível e que fosse muito resistente. Que resistisse ao uso de – di-lo com um sorriso – “um casal de amantes”.
Foram fabricados 10 mil exemplares do que era então o sofá-cama mais barato em Itália. Mas nenhum vendedor o quis comprar. Foi um fracasso comercial. Mari continua a história, no mesmo tom calmo e pausado, sem qualquer ponta de nostalgia: estávamos em 1968, altura de protestos estudantis e de movimentos políticos, onde se citava Mao e se falava de “servir o povo, etc”. Alguns destes líderes pediam a Mari que lhes desenhasse um cartaz, uma capa de um livro. Uma vez um deles entra na sua sala e diz: “Mas tu que fazes objectos tão belos, como pudeste fazer – apontando para o sofá-cama Day & Night – este objecto tão feio?” e Mari respondeu “Foi-me oferecido, não me importa ter objectos belos ou feios. Mas e tu, que tipo de camas gostas?” E o jovem líder responde: “Uma grande cama, redonda, com uma base toda em mármore, e um colchão de água. Por cima, um lustre de Murano, um televisor incorporado, e muitas outras coisas.” Mari termina esta história com a frase “Che fare?” (que fazer?). “O meu trabalho não faz mais sentido.” Se fosse para produzir coisas que ninguém compreende, mais valia mudar de profissão. Ou poderia tentar fazer qualquer coisa para ajudar as pessoas a compreender.
Mari fala a seguir daquilo a que este filme se dedica: o seu projecto Autoprogettazione. Pensou: “se alguém tentar construir um objecto sozinho, provavelmente aprenderá alguma coisa.” Se, por exemplo, comprar uma mesa, produzida industrialmente, com um preço justo, mas a tiver construído, saberá como não deixar uma das perna ficar bamba. Isto, diz Mari, é uma coisa fácil de dizer, mas não é expectável que as pessoas conheçam as várias tecnologias disponíveis ou que possuam as ferramentas necessárias para produzir o seu mobiliário. Foi nesse sentido que projectou 19 modelos de móveis – camas, armários, cadeiras, estantes, mesas, etc. – que pudessem ser construídos a partir de tábuas e outras peças simples de madeira. Ele apresentou esta colecção de mobiliário numa exposição em 1974, onde fez uma conferência. Foi acusado “quase de fascismo” pelos seus colegas designers e artistas, que defendiam que um designer deve trabalhar para fazer objectos que simplifiquem a vida às pessoas. Mari, segundo eles, obrigava as pessoas a trabalhar. Os mal-entendidos não terminariam aqui. Fez uma brochura, Proposta per un’Autoprogettazione, com as instruções de montagem de cada um destes modelos e enviou-a a quem lhe pagou os portes de envio. Na volta do correio recebeu milhares de cartas, elogiando o seu “puro génio”, mas também dizendo que tinham feito todos os 19 modelos pois o “estilo rústico” do seu mobiliário adequava-se ao seu chalets nos Alpes ou nas Montanhas Rochosas dos EUA. Mari desabafa, de novo: “Estávamos de volta ao puro kitsch.”
O filme termina com Mari falando do relançamento da cadeira-base Autoprogettazione em 2010, 35 anos depois da primeira sua apresentação, durante o Salone del Mobile de Milão (este video teve então a sua estreia mundial). Relançada pela Artek, a firma fundada pelo arquitecto Alvar Aalto 75 anos antes, a cadeira Sedia 1 não estaria à venda inteira mas em peças, dentro de uma caixa desenhada por Mari juntamente com instruções de montagem e uma brochura explicando o projecto. O video conclui com Mari dizendo que aceitou o desafio da Artek pois esta empresa pensa, como ele, que «design só é design se comunica conhecimento.» Esta é uma frase importante.
Mercadoria [não é igual a] Conhecimento
O que Mari não diz no video é que cada uma destas caixas custa à volta de 250 euros. Ou seja, que a empresa finlandesa, adquirida em 2013 pela suíça Vitra, o mais influente fabricante de mobiliário dos nossos dias a seguir à IKEA, vende uma cadeira Autoprogettazione não como um projecto radical, do it yourself, ou open design, mas como uma espécie de IKEA para ricos. Ou para alguém mais interessado em ter uma peça de mobiliário “assinada” por um “mestre” – ou pior ainda, um “designer famoso” – do que em aprender alguma coisa. Mari também não diz que uma mesa Autoprogettazione construída em 1975 foi vendida em 2006 por 14,400 dólares num leilão da Sotheby’s, nem que em 2007 a galeria Demisch Danant promoveu uma exposição de reedições de peças Autoprogettazione, que ele próprio montou e assinou – algumas ainda estão à venda por mais de 10 mil dólares. Não é preciso ser marxista para dizer que há muito fetichismo nesta mercadoria.
Contradições aparte, este video – de visualização gratuita, de fácil reprodução e facilíssima partilha – prova que a verdadeira concretização do projecto Autoprogettazione, desde a sua criação em 1974, está não na produção de mercadoria, mas sim de conhecimento. Desta forma, poderemos traduzir o termo autoprogettazione como auto-projecto, e design como um verbo, um desígnio, e não como um produto acabado. Por isso é que este documento é fundamental para entender as potencialidades e os territórios, mas também os discursos muitas vezes contraditórios do design contemporâneo.
Também foi por isso que este projecto, e o próprio Mari, ficaram recentemente “na moda.” O designer foi alvo de uma exposição retrospectiva em Turim (Enzo Mari – L’arte del Design, Galleria Civica d’Arte Moderna e Contemporanea, 29.10.08-6.01.09) e de uma entrevista com Hans Ulrich Obrist, publicada em livro em 2009. O projecto foi o sujeito de uma exposição em Londres (Autoprogettazione Revisited, Architectural Association, 3-27.10.09), sendo mais tarde integrado em Adhocracy, uma das duas exposições da primeira edição da Bienal de Design de Istanbul (Escola Grega de Galata, 13.10-12.12.11), remontada mais tarde em Nova Iorque (New Museum, 04.05-07.07.13) e Londres (Limewharf, 4.11-12.10.13).
Design português, um slogan vazio
Este longo preâmbulo a um texto sobre os territórios do design português contemporâneo tenta, a partir do exemplo de Enzo Mari, reconsiderar e desmistificar algumas ideias associadas a este subtítulo. Em primeiro lugar, em vez de uma validação da carreira ou do legado de um “mestre”, como tantas vezes acontece nos documentos retrospectivos ou elegíacos de uma carreira de um designer ou de um arquitecto – livros, exposições, documentários, colóquios, etc. – este video prova que a carreira de Mari está plena de fracassos, mal entendidos, ilusões e desilusões, que a fama e o reconhecimento profissional não são a mesma coisa, e que qualquer intenção de reforma do gosto – uma missão que tantos designers e arquitectos chamam para si há mais de 150 anos – é tão impossível quanto indesejável. Daí ser um documento tão importante quanto inspirador.
Este documento reforça ainda outra ideia: o design italiano que Mari ajudou a construir, mesmo quando o atacou, não existe mais. Desde os anos 40 que os fundadores de empresas italianas de mobiliário, iluminação e electrodomésticos foram trabalhando com arquitectos-designers como ele para criar produtos de consumo considerados (muitas vezes retroactivamente) de sucesso, icónicos ou, até, clássicos do design. Nos anos 90, essas e outras empresas abrem-se a um núcleo cada vez mais internacional de designers, fazendo com que muito do chamado design italiano, mesmo que ainda produzido no extraordinariamente dinâmico e produtivo norte de Itália, passasse a ser cada vez mais pensado fora das suas fronteiras. A esta internacionalização seguiu-se uma sequência de fusões e aquisições de fabricantes e, nos últimos anos, uma venda dessas empresas a capitais estrangeiros.
Nosso mundo globalizado de objectos, imagens e capital não faz mais sentido associar identidades ou fronteiras nacionais ao design. Se em Itália, uma nação outrora rica e agora descapitalizada o slogan design italiano se foi esvaziando, num país onde capital e indústria, ou melhor, capitalistas ou industriais, mas também governantes e consumidores informados, receptivos e exigentes em termos de design, nunca abundaram, design português é na melhor das hipóteses um slogan vazio. De que fracassos, mal-entendidos e frustrações falariam hoje designers portugueses da geração de Mari como Daciano da Costa, Sebastião Rodrigues, Sena da Silva ou mesmo António Garcia? (2)
Promessas
Um dos pontos de inflexão desta interpretação do design como uma disciplina que tende a produzir resultados ou a projectar promessas para o comércio e para a indústria teve lugar, em Portugal, durante o Concurso Jovem Designer. Organizado pelo Instituto do Comércio Externo de Portugal (ICEP) entre 1986 e 2003, este concurso prometia efectuar uma ligação duradoura e profícua entre escolas – no início apenas a Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa (ESBAL), a que se juntaram mais tarde outros estabelecimentos de ensino superior que foram abrindo entretanto –, centros tecnológicos, empresas e uma ideia de mercado, nomeadamente mercado externo.
O contraste entre os catálogos de 1987 e 2002 é notório. O primeiro mostra um pequeno leque de promessas comerciais, gamas de artigos em cerâmica de mesa e trens de cozinha em aço inox destinadas ao mercado britânico, realizados por alunos da mesma escola, muitos dos quais são hoje professores – não na ESBAL, mas na FBAUL (Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa). O segundo mostra a forma como os objectivos e enunciados do concurso foram alterados pelos seus organizadores, reflectindo também mudanças no tecido industrial e comercial, nos padrões de consumo nacionais e também no entendimento do design em termos internacionais.
Nesse ano, o designer convidado – que desde a primeira edição representava um mercado externo ao qual o concurso de dirigia – foi o austríaco Dietmar Valentinitsch; o seu texto de introdução ao catálogo fala mais de Marcel Duchamp do que de curvas ascendente de vendas (3), mais de ideias e menos de produtos. As restantes páginas reúnem um conjunto de experiências conceptuais à volta de uma porta realizadas por alunos de oito universidades e politécnicos de todo o país, de forma individual e em grupo, nos mais diversos materiais, tecnologias e graus de aplicabilidade.
Como a tese de mestrado de Carla Castanheta de 2013 (4) sobre o Concurso Jovem Designer conta com bastante detalhe, esta iniciativa falhou tanto nos seus objectivos de inclusão de jovens designers na indústria como na sensibilização dos industriais portugueses para o design. Basta dizer que ao longo de 22 anos não foi produzido um único produto a partir dos protótipos apresentados nas exposições do concurso, ou que nem uma única empresa portuguesa tenha mostrado um interesse estratégico na iniciativa.
Isso não quer dizer que este tenha falhado na sua dimensão de experiência pedagógica. Podemos assim analisá-lo não como mais um avultado investimento do Estado (e também, a certa altura, de fundações privadas) em mais uma fracassada tentativa de dinamização de um tecido industrial mal formado, pouco informado e muito conservador, mas como um investimento pouco convencional na formação de designers ao nível do ensino superior. Ao ter permitido muitos estudantes portugueses ter não só um complemento da sua aprendizagem universitária num centro tecnológico ou empresa mas também uma oportunidade de expor e ver o seu trabalho distinguido e premiado, tanto em Portugal como no estrangeiro, este concurso deu a oportunidade a muitos jovens de aprender e trabalhar mais e melhor. Desde a criação dos primeiros cursos superiores de design em 1975, e apesar do enorme crescimento na oferta do ensino em design desde então, este concurso foi ainda uma das raríssimas ocasiões em que os estudantes de design se puderam encontrar num contexto semi-profissional, exigente e aberto, onde puderam expor e como tal comparar a sua formação e o seu trabalho. Outras, poucas, surgiriam nos anos seguintes.
Ao longo dos anos o concurso foi também proporcionando novas interpretações do que significa ser um estudante de design, ou até um “jovem designer”. Nos anos 1980 a natural evolução de um estudante para um profissional de design seria a integração nos quadros de uma indústria. Um modelo aliás vaticinado, em paralelo, em programas de estágio empresarial que foram sendo implementados pelo Centro Português de Design (CPD) desde os anos 1980. Esta interpretação mudaria no século XXI em programas como o INOV’Art da Direcção-Geral das Artes ou o programa Leonardo da Vinci/Erasmus, que apoiariam jovens designers e arquitectos a estagiarem não nos potenciais clientes, mas nos fornecedores de serviços de design, como ateliers de design, escritórios de arquitectura e agências de publicidade – por todo o mundo. Aqui, o estagiário surge como um profissional autónomo, um autor, um jovem criador. Este estatuto encontra eco também no concurso Jovens Criadores, que desde 1994 tem sido uma montra privilegiada para jovens talentos em várias áreas das artes e letras, incluindo o design.
(Falsos) Princípios
Em 2003, praticamente em simultâneo com a última exposição do Concurso Jovem Designer na Sociedade Nacional de Belas-Artes, teve lugar no antigo Edifício Record a exposição S*Cool (18.09-02.11.13), uma das exposições nucleares da 3ª edição da Experimentadesign. Na altura, os responsáveis da então designada Bienal de Lisboa afirmaram que esta exposição de estudantes de design industrial materializava uma das suas ambições: “antecipar os caminhos futuros do design português e trabalhar directamente com as escolas.” Este exercício passou “por convidar 7 escolas superiores de arquitectura e design nacionais a definirem um portfólio que pode funcionar como uma amostra dos trabalhos produzidos no laboratório académico. Os portfolios enviados foram depois objecto de um segunda selecção efectuada pela Experimenta.” Ao contrário das exposições do Concurso Jovem Designer, onde cada estudante concorria de forma individual (ou, ocasionalmente, em grupo) e não como representante da sua escola, aqui os alunos, os seus modelos, maquetas e protótipos encontravam-se congregados por instituição de ensino. (5)
Esta decisão pretendia, como se lê na brochura-catálogo da Bienal, “conseguir mais do que apenas sistematizar contributos avulsos” para “valorizar a dinâmica dos estabelecimentos de ensino superior, oferecendo uma oportunidade de afirmação do valor do ensino ali ministrado, sem retirar protagonismo ao talento individual dos autores.” Pretendia-se assim oferecer “uma panorâmica alargada das tendências que podem marcar o design português num futuro próximo, constituindo ainda uma homenagem às escolas e aos muitos que preparam o terreno para a crescente dignificação do design português dentro e fora de portas.”
Esta exposição não serviu propriamente como exercício comparativo da originalidade, complexidade ou ambição dos enunciados ou dos projectos apresentados – nem tão-pouco da sua aplicabilidade comercial. Esse exercício tornar-se-ia praticamente impossível dada a constituição muito diversa dos portfolios escolares; o Instituto Superior Técnico, por exemplo, apresentou trabalhos finais dos primeiros alunos formados na sua licenciatura em arquitectura (ano lectivo 2002/2003), enquanto outras escolas apresentaram trabalhos realizados em vários anos dos seus cursos. Porém, esta exposição conseguiu colocar em evidência uma ideia de identidade das sete diferentes escolas/cursos. Fê-lo através de resultados mais ou menos bem acabados e mais ou menos fáceis de expôr, fotografar e explicar no contexto de uma exposição, que comunicavam as respostas dadas pelos alunos a um dado enunciado.
A S*Cool regressou em 2005 como uma das exposições nucleares da Experimentadesign, mas com um formato, objectivos e resultados bastante diferentes. Então chamada S*Cool Ibérica, apresentou 20 projectos desenvolvidos num workshop com 40 alunos de design de produto e design de comunicação de 12 escolas portuguesas e espanholas, coordenado por quatro designers: os espanhóis Alvaro Sobrino e Martín Ruiz Azúa e os portugueses António Silveira Gomes e Fernando Brízio. Neste caso a experiência pedagógica proposta por este workshop/exposição era mais circunstancial e menos ambiciosa: como em tantas outras exposições decorrentes de workshops, os seus resultados forneciam mais vislumbres do processo de aprendizagem e experimentação ocorridos num curto período de tempo do que “uma panorâmica alargada das tendências que podem marcar o design português” – ou espanhol – “num futuro próximo”. Desde então a Experimentadesign deixou de incluir exposições ou outras iniciativas dedicada ao ensino ou ao trabalho de estudantes de design na sua programação. Após o fim do Concurso Jovem Designer e não existindo em Portugal o hábito ou tradição em organizar e promover, de forma consistente e profissional, exposições de alunos finalistas em design, ao continuar a exposição S*Cool a Experimentadesign poderia ter dado um dos maiores contributos para o ensino, prática e promoção do design em Portugal.
Duas das ideias apresentadas na primeira S*Cool, a mala Just Beg de Naulila Luís e o saleiro e pimenteiro Bottled Spices de João Sabino, então ambos estudantes na Escola Superior de Arte e Design das Caldas da Rainha (ESAD.CR), viriam mais tarde a fazer parte do catálogo da Designwise, uma marca criada em 2002 pela Experimentadesign. Esta marca foi uma bem-intencionada mas equivocada tentativa de uma associação cultural sem fins lucrativos, que tinha como principal missão organizar em Lisboa um evento internacional bianual dedicado ao design e cultura do projecto, criar uma marca e gerir a produção, distribuição, comercialização e promoção de um catálogo de produtos projectados por designers portugueses e produzidos em Portugal. Entretanto já extinta, a Designwise representa um dos exemplos de como a Experimentadesign se constituiu, mais for solicitação extrínseca do que por vontade intrínseca, como substituto ou alternativa ocasional a instituições, empresas e outros agentes do estado ou do mercado no cumprimento de uma tarefa que lhe era frequentemente exigida: a promoção do design português. Não fazendo esta tarefa parte da missão principal da associação – de cuja equipa fiz parte entre 2003 e 2006 – não surpreende que esta raramente tenha sido bem compreendida, desempenhada ou sequer pensada de forma estratégica. Todavia, essa tarefa foi sendo desempenhada, através de acções paralelas ou tangentes à bienal e outras iniciativas lideradas por Guta Moura Guedes, fundadora e presidente da Experimentadesign. Uma delas ocorreu em 2004 com uma exposição “de estado.”
Expectativas
A exposição P – Design de Portugal 1990-2004 resultou da intenção do Presidente da República Jorge Sampaio em realizar uma exposição sobre arquitectura e design contemporâneos aquando da sua visita oficial a Itália no fim de 2004. Esta exposição, patente na Trienal de Milão (12.11.04-09.01.05), teve Henrique Cayatte como comissário-geral e comissário da secção de design de comunicação e multimédia, Vitor Mestre como comissário (e Ricardo Carvalho como sub-comissário) da secção de arquitectura e espaços públicos e Guta Moura Guedes como comissária (e eu próprio como sub-comissário) da secção de design de equipamento e produto.
Esta secção, que Moura Guedes caracterizou no seu texto curatorial como “uma narrativa possível sobre o actual ADN do design industrial português, construída a partir da observação sobre a produção nacional nos últimos 24 anos”, era composta por quase 60 projectos distribuídos por dez módulos temáticos: Ponto de Partida juntava a cadeira tradicional rabo de bacalhau com 11 cadeiras de esplanada Gonçalo, Natureza/Colectivo mostrava um banco de exterior, projecto tardio de Daciano da Costa ainda em produção e Solidão destacava o móvel de gavetas Igor, de Pedro Silva Dias, lançado pela Loja da Atalaia em 1991 e do qual foram produzidos apenas cinco exemplares. Os restantes módulos, Solidez/Traço, Observação/Reinterpretação, Transparência/Musicalidade, Humor, Reciclar/Renovar, Inventar/Experimentar e Luz/Branco eram compostos por vários exemplos de projectos apresentados sobretudo em exposições “de design”, nomeadamente nas várias edições da Experimentadesign. Pensados como “dez cenários possíveis sobre a actual dinâmica e personalidade do design industrial português”, quando a exposição abriu em Milão estes módulos poderiam até falar de uma personalidade, mas de dinâmica falavam muito pouco. A maioria dos objectos expostos não tinha passado da fase de protótipo ou não se encontrava mais à venda; 10 anos depois, praticamente todos os produtos foram descontinuados, quer pela falência dos seus produtores, quer pela desistência dos seus autores em insistir na sua produção, distribuição e comercialização. Isso fez com que toda uma secção de uma exposição “de estado”, e a principal exposição de design industrial português numa década – desde a exposição Design Lisboa 94 (Centro Cultural de Belém, 09.11.94-04.01.95), no âmbito da Lisboa’94, Capital Europeia da Cultura – fosse composta não por exemplos de sucesso, mas por testemunhos do falhanço da indústria nacional. Um gabinete de curiosidades do design pensado, mas não produzido em Portugal.
Logo em 2004, essa evidência foi criticada não pelos projectos falhados escolhidos, mas pelos produtos de sucesso deixados de fora. Estas críticas fizeram com que, quando a exposição foi apresentada em Lisboa no âmbito da Experimentadesign 2005 (Estação do Rossio, 19.09-30.10.2005) fosse acrescentado um destes produtos, a torneira Techno 465, projectada por Carlos Aguiar e produzida desde 2001 pela Cifial. (6) Não obstante Aguiar ser o designer industrial português mais premiado tanto nacional como internacionalmente, e deste produto ter sido também distinguido com vários prémios e exposto por todo o mundo, e apesar de ser apresentada no módulo Solidez/Traço, esta torneira não fazia parte do cenário. A sua inclusão prejudicou a afirmação curatorial, o ponto de vista dum momento-charneira na curta história das exposições de design em e de Portugal.
Com toda a sua parcialidade e limitações de representatividade em termos de projectos (tecnologias, materiais, tipologias ou mesmo escala e complexidade) e de designers (geração, origem ou localização no território nacional, estatuto e vínculo profissional), o ponto de vista proposto era que o design poderia ser considerado, valorizado e distinguido enquanto manifestação de criação intelectual, ou até de afirmação autoral, desafiando a relação necessária e indissociável com aplicabilidade industrial, sucesso comercial, democratização do consumo ou acesso e até eficácia social. Tal afirmação não seria então inédita, nem polémica. Porém, apresentar uma tal ideia de design, sobretudo ao nível de estado, romperia com toda uma prática e retórica de exposições de design nacional, da 1ª Exposição de Design Português organizada em 1971 pelo Instituto Nacional de Investigação Industrial às várias mostras de design organizadas pelo ICEP e pelo CPD, tanto em Portugal como no estrangeiro, até à extinção do último em 2013. Estas exposições merecem uma análise profunda, não só pelas repercussões e resultados obtidos em termos comerciais, mas também pela ideia de design português que ajudaram a construir, tanto a nível nacional como internacional.
Outra ideia bem diferente destas duas tem sido construída no passado mais recente. Desde a sua fundação em 2003, a empresa Menina Design Group tem-se destacado pela criação de mobiliário de formas excêntricas, materiais luxuosos, preços escandalosos (7) e um questionável virtuosismo artesanal. Sob a marca Portugal Brands, a Menina Design tem também levado uma selecção de marcas portuguesas – incluindo as suas próprias quatro marcas (8) – e a sua versão do design a feiras de mobiliário, elevando-a ao nível de representação nacional. Paralelamente, o município de Paredes tem promovido, através do evento internacional Art on Chairs, a iniciativa Duets, em que designers e arquitectos portugueses são convidados a projectar cadeiras para celebridades mundiais. As peças únicas que resultam deste desafio – viabilizado através fundos públicos – são mostrados por todo o mundo como exemplos do design português e do saber fazer da indústria de uma região. Para que servem? Num país onde nos últimos 10 anos o apelo do design moderno e acessível do IKEA virou do avesso o consumo e produção de mobiliário (9), estas marcas e projectos sugerem que os portugueses vivam com o sonho do luxo e da peça única, enquanto sobrevivem numa realidade low-cost. Além de slogan vazio, fazem do design português publicidade enganosa.
Experiências
É impossível falar de outros territórios para o design contemporâneo em Portugal sem mencionar, de novo, a Experimentadesign. Tanto a bienal de design, organizada em Lisboa desde 1999, como muitas outras iniciativas da associação que a promove tiveram um papel fundamental na informação, inspiração e conhecimento da comunidade de profissionais e estudantes de design e arquitectura portugueses, além o público em geral. Apesar da sua conturbada história, a Experimentadesign conseguiu trazer a Lisboa uma riquíssima multiplicidade de percursos, perspectivas e práticas desta actividade – incluindo, em 2011, o próprio Enzo Mari – na sua programação própria de exposições, conferências, debates, workshops ou ciclos de cinema, ou ainda noutros eventos e apresentações tangenciais à bienal. Só não beneficiou desta oferta quem não quis.
Um dos designers que mais beneficiou de uma ligação duradoura à Experimentadesign foi Fernando Brízio. Esta ligação passou, além de outras participações, pela apresentação do seu trabalho em todas as edições da Bienal, culminando com uma exposição retrospectiva da sua carreira em 2011 (Fernando Brízio: Desenho Habitado, Convento da Trindade, 29.09-27.11.11). De todos os percursos de designers contemporâneos portugueses nenhum outro é tão singular e exemplificativo de como o design de facto pode comunicar conhecimento.
Um dos melhores exemplos de como Brízio o faz é a sua mesa Target, apresentada na exposição comissariada por Hansjerg Maier-Aichen durante a Experimentadesign 2009 (Lapse in Time, Sociedade Nacional de Belas-Artes, 13.09-08.11.09), para a qual ele fez também o design de exposição. Descrito de uma forma simples, Target é uma mesa feita com setas espetadas num alvo. Mas essa descrição não chega. Como é que esta mesa passa de ideia a produto? Quem a produz? De onde vêm as setas? Onde é que se arranja o alvo? Quem atira as setas? O próprio designer? O mesmo chinês, ou português, que trabalha na fábrica onde se fazem as setas e o alvo? Nós, que compramos as partes e as montamos em casa? E o arco, é preciso um arco? E o que se faz ao arco depois da mesa feita? Quantas setas são precisas para que um alvo se torne num tampo com pernas? O que é se compra, quando se compra esta mesa? Isto é uma valiosa edição limitada (e assinada?) ou um conjunto de instruções gratuito para uma edição ilimitada? O que conta mais, a mesa acabada, a performance através da qual o seu autor a materializa, ou o treino e perícia envolvidos em chegar a um resultado? Entre uma e outra resposta a estas e muitas outras perguntas que podem ser feitas a este projecto, o valor de um produto, mas também das componentes materiais e imateriais que o compõem vai mudando radicalmente e nunca fica definido. Tal como o Autoprogettazione de Mari, Target é um exemplo de design validado não pelo seu resultado, mas pela sua potencialidade. Consumimo-lo não com a carteira, mas com o cérebro.
Ao longo de mais de 20 anos, praticamente nenhum dos projectos de Brízio foi produzido ou comercializado em grande escala. Isso não constitui nem um fracasso, nem quer dizer que ele não seja considerado um dos maiores designers europeus dos nossos dias. Ou que o seu trabalho não tenha sido mostrado, publicado e discutido fora dos territórios convencionais do design de equipamento e produto, como exposições, publicações de design e galerias fora e dentro território nacional.
Também em Portugal, galerias como a Appleton Square, a März ou as Galeria Cristina Guerra e Galeria Filomena Soares, mas também a Show Me e as mais recentes Galeria Bessa Pereira e Arquivo 237, continuaram o trabalho pioneiro iniciado pela Loja da Atalaia nos anos 1990 na criação de um mercado vulgarmente apelidado de design-arte: edições limitadas e extremamente valorizadas de produtos e peças de mobiliário – incluindo antiguidades como as caríssimas mesas Autoproggetazzione – destinadas a coleccionadores e museus. Os críticos deste mercado ou versão de design concordarão com o crítico de design americano Ralph Caplan, quando ele diz que “os designers não deviam projectar para museus tal como as múmias não deviam morrer para eles.” Com efeito, este circuito alternativo do design tem dado azo à criação de muita mercadoria e muito fetichismo, mas também possibilitado pesquisa e experimentação em design que de outra forma não seriam viabilizadas. Para além de Brízio, outros designers de produto e mobiliário portugueses que têm explorado este território incluem nomes como Miguel Vieira Baptista, Miguel Rios, Filipe Alarcão, Toni Grilo e Marco Sousa Santos, mas também Rui Pereira, Joana Astolfi, Gonçalo Campos, Ana Mestre e o estúdio Pedrita (Pedro Ferreira e Rita João).
Cruzamentos
Tal como Fernando Brízio, algumas das exposições aqui citadas incluíram outro importante nome português do design contemporâneo: Susana Soares. Ainda como sua aluna na ESAD.CR – o ensino tem sido um dos importantes legados de Brízio para o design nacional – ela havia participado no Concurso Jovem Designer em 2001 e 2002, e na exposição S*Cool em 2003. A seguir à licenciatura em design industrial, Soares muda-se para Londres, onde integrou a primeira turma do mestrado Design Interactions da Royal College of Art (RCA).
É aqui que em 2007 vai criar um dos seus projectos mais divulgados, expostos e discutidos. Bee’s é uma série de objectos de vidro que explora uma pesquisa científica em curso sobre meios alternativos de diagnóstico de doenças humanas através do treino de abelhas, questionando que tipo de sistemas e interfaces poderão surgir se esta pesquisa for um dia aplicada. Três destes objectos, produzidos na Marinha Grande, estão hoje na colecção de design do MoMA de Nova Iorque, fazendo de Susana Soares o único português representado na colecção de design mais influente do mundo.
Esta designer é também um dos poucos representantes nacionais da chamada corrente especulativa ou crítica do design, iniciada precisamente pelos coordenadores do mestrado que frequentou na RCA, os britânicos Anthony Dunne e Fiona Raby. Após o seu projecto com abelhas e outro com mosquitos – Am I attractive? – que mostrou na exposição Lapse in Time da Experimentadesign 2009, Soares está agora empenhada num novo projecto chamado Insects au Gratin. Iniciado em 2011 com um cariz mais especulativo, este projecto tomará em breve a forma de empresa dedicada à produção de uma alternativa mais sustentável e nutritiva à carne – uma farinha de insectos moídos – de forma industrial e massificada.
Uma outra prova do progressivo cruzamento de territórios entre o design, a arte e a ciência, mas também de uma estratégia alternativa de promoção e apoio do estado ao design àquela promovida pelo Centro Português de Design foi dada pela criação em 2006 dos programas de apoios pontuais do Instituto das Artes, mais tarde Direcção-Geral das Artes. Estes apoios, ainda sub-utilizados por designers, têm permitido o financiamento de projectos sem fins comerciais com diferentes âmbitos e ambições, dos quais se destacam a série de candeeiros em pyrex e prata White Blood de Marco Sousa Santos (2007), o livro e exposição itinerante Uma Terra Sem Gente Para Gente Sem Terra, do designer de comunicação Nuno Coelho dedicado ao conflito israelo-palestiano (2007-2012) e o projecto multidisciplinar Fabrico Próprio – o Design da Pastelaria Semi-Industrial Portuguesa (2007-), cuja autoria e coordenação partilho com Rita João e Pedro Ferreira (Estúdio Pedrita), ou os projectos Pele e Combo, dos designers de moda Nuno Matos e Sara Lamúrias (2008).
Território
Há ainda todo um outro território que tem vindo a ser explorado por designers de produto e equipamento, ao qual chamo precisamente de território. Este engloba projectos que relacionam o design com uma região, comunidade ou produção artesanal específica. Nestes vulgarmente apelidados de projectos de design e artesanato os designers são chamados, em geral não pelos artesãos ou produtores de bens de consumo de fabrico artesanal, mas por entidades externas, tais como câmaras municipais, fundações, ou mesmo o Instituto de Emprego e Formação Profissional (responsável pela “profissionalização” do artesão e “preservação” do seu estatuto), para “actualizar”, “dinamizar” ou “modernizar” uma determinada manufactura. Alguns exemplos deste projectos incluem Experimenta o campo, coordenado por Bruno Carvalho e Luís Ferreira com o Centro de Estudos de Novas Tendências Artísticas – CENTA, que juntou alunos e professores da ESAD.CR e artesãos da Beira Interior Sul e Alto Alentejo (2006); Desenhar a tradição, coordenado pelo Cencal e o Centro Cultural de São Pedro do Corval (2006); TASA – Técnicas Ancestrais, Soluções Actuais (2010-2011), desenvolvido pelos The Home Project (Álbio Nascimento e Kathi Stertzig) para a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Algarve; a plataforma online Design à mão desenvolvida por Rita Botelho (2011) ou L4Craft – Local for Craft, coordenado por João Nunes para a ADXTUR – Agência para o Desenvolvimento Turístico das Aldeias do Xisto (2014); ou o Projecto remix, coordenado pela Associação Entremundos em parceria com as Juntas de Freguesia de Marvila e de Arroios, em Lisboa.
Qualquer um destes projectos tem, como qualquer outra iniciativa empresarial ou institucional que emprega serviços de design, valências e fragilidades, sucessos e fracassos. Porém, a maioria se não a totalidade destes projectos implica uma perversão da relação entre cliente e prestador de serviço, entre promessa e resultado. Sendo financiado por outras entidades que não o produtor, ou seja, o cliente a quem é prestado o serviço de design, e coordenado muitas vezes pelos próprios designers, que no geral não têm domínio sobre a integridade, razoabilidade ou continuidade de uma determinada produção, raramente estes projectos vão além da “fase dossier”, ou seja, do cumprimento de objectivos burocráticos que justificam os subsídios ou a filantropia de que são dependentes. A complexidade destes processos de design dito “social”, sobretudo quando envolvem relações entre designers do mundo desenvolvido e produtores do mundo em desenvolvimento, tem vindo a ser alvo de um escrutínio e crítica cada vez maior a nível internacional. Também em Portugal, urge fazer uma avaliação fria e destemida das promessas, expectativas, resultados e experiências destes projectos. E nada melhor do que a universidade para efectuar, discutir e publicar essa análise e avaliação.
Conhecimento
O que nos traz ao último território do design contemporâneo: a produção de conhecimento. Fruto da incorporação das escolas superiores de design em universidades e institutos politécnicos, de uma explosão no número de cursos e de estudantes de design e na progressiva implementação do processo de Bolonha que veio redesenhar por completo o ensino superior em Portugal (e não só), nunca como agora se produziu tanto conhecimento sobre design no nosso país. Não só a partir de respostas dadas a enunciados práticos mas cada vez mais em teses de mestrado e ainda em teses de doutoramento, desenvolvidas e defendidas fora, mas cada vez mais dentro das fronteiras nacionais. Aos poucos vai-se criando em Portugal uma massa crítica sobre design. Em teoria. Na prática, onde se aplica todo este conhecimento gerado por designers no meio académico?
Este contraste entre produção de projectos e de teses tornou-se bastante evidente na exposição 22 Anos de Design da FAUL, comissariada por Mário Matos Ribeiro no MUDE – Museu do Design e da Moda, Colecção Francisco Capelo (24.01-23.03.14). Esta exposição mostrava o trabalho desenvolvido por licenciados, mestres e doutores em diversas áreas de design (produto e serviços, moda, comunicação, ambientes…) da Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa. Ao fundo da galeria estavam as suas teses: volumes A4 com largas lombadas, longos títulos e pouco sugestivas capas, presos à parede. Como é que se liberta o conhecimento ali reunido e encerrado? Um dos principais agentes envolvidos na “libertação” desse conhecimento tem sido precisamente o MUDE. Este museu tem conseguido ultrapassar as idiossincrasias da colecção privada a partir da qual foi estabelecido através de uma hábil, embora ainda tímida aplicação do conhecimento e investigação académicos em design, nomeadamente ao nível da história do design em Portugal. Exemplo disso é a exposição António Garcia. Zoom in/Zoom Out (MUDE, 30.04-04.07.10) comissariada por Sofia da Costa Pessoa, que escreveu a sua tese de mestrado em museologia e museografia na FBAUL sobre este pioneiro do design moderno. Ou, mais recentemente, a exposição O respeito e a disciplina que a todos se impõe (MUDE, 24.07-09.11.14), comissariada por João Paulo Martins, que lidera um projecto de investigação na FAUL sobre o mobiliário utilizado em edifícios público do Estado Novo. Muitas outras teses e projectos de investigação em design existem e continuarão a ser criados em Portugal. Como serão eles eficazmente aplicados, discutidos, criticados, valorizados no futuro? Para voltar a Mari, como é que se comunica o conhecimento em design?
Comunidade
Num Ano Português do Design que pouco se vê e menos se sente não posso concluir este texto sem apelar a um outro território que falta conquistar no design em Portugal: o sentido de comunidade. Que é muito diferente da constituição ou formalização de uma classe, tal como aquela defendida pela Associação Nacional de Designers (AND), cuja definição de designer e discurso corporativo repudio em absoluto (10). Aliás, até hoje nem a AND, fundada em 2003, nem a APD (Associação Portuguesa de Designers), fundada em 1976, foram capazes de reunir e dinamizar uma comunidade alargada de estudantes e profissionais, professores e investigadores, além de outros agentes ligados às várias áreas do design. Nenhuma outra instituição – museu, centro, escola, evento, publicação, etc. – foi capaz de o fazer. Porquê? Aponto uma razão: não foi dada aos estudantes de design a possibilidade de participar nessa comunidade, de a dinamizar, fortalecer, e renovar. Se o Concurso do Jovem Designer foi uma das poucas instâncias onde se criou uma comunidade, espero que o Encontro Nacional de Estudantes de Design (ENED), organizado anualmente desde 2012 (11) possa, juntamente com outros parceiros e agentes, continuar o seu legado e que desperte nos designers portugueses de hoje e de amanhã a vontade de encontrar e explorar um território comum.
Notas
1. http://vimeo.com/39684024 acedido no dia 09/09/2014
2. Exemplo de um testemunho semelhante em candura e franqueza, a nível nacional, é a entrevista de Eduardo Afonso Dias a Rui Carreto, no catálogo da exposição O Design Possível: Eduardo Afonso Dias, 50 Anos de Profissão, publicado pelo MUDE em 2014.
3. Numa alusão à célebre frase “A mais bela curva é um gráfico de vendas ascendente” do designer franco-americano Raymond Loewy (1893-1986).
4. Castanheta, Carla. Concurso Jovem Designer: um contributo para a cultura do design em Portugal, Tese de mestrado, Design de Equipamento – Especialização em Estudos de Design, Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas-Artes, 2013.
5. Escola Superior de Arte e Design de Matosinhos, Escola Superior de Tecnologia, Gestão, Arte e Design das Caldas da Rainha (hoje Escola Superior de Arte e Design das Caldas da Rainha) do Instituto Politécnico de Leiria, Faculdade de Arquitetura da Universidade Técnica de Lisboa (hoje Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa), Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, IADE – Instituto Superior de Design, Instituto Superior Técnico e Universidade de Aveiro.
6. Este foi um de três produtos acrescentados à exposição aquando da sua segunda apresentação; para descobrir as diferenças, basta consultar os catálogos de Milão e de Lisboa, ambos publicados pela editora D. Quixote, respetivamente em 2004 e 2005.
7. Mais ainda quando sabemos da sua política de contratação de estagiários, divulgada pela plataforma ganhemvergonha.pt e numa reportagem da RTP em 2013.
8. Além da mais conhecida marca, Boca do Lobo, outras marcas e projetos incluem: Brabbu, Secret Brands, Delightfull, Koket, Preggo, MDI, My Design Agenda, Design Gallerist, Clube Delux e Fundação do Design.
9. Desde 2004, os produtos comprados nas três, em breve quatro, lojas do IKEA em Portugal têm transformado a paisagem doméstica, laboral e até mediática dos portugueses, enquanto a indústria e a comercialização do mobiliário, cerâmica e vidro têm sido afetadas pela sua concorrência feroz e pela falta de criação de alternativas, de que é exemplo a recente insolvência da Moviflor.
10. Segundo os seus estatutos, a Associação Nacional de Designers (AND) representa, somente, os técnicos com habilitação superior em design, portadores dos graus académicos de licenciatura, mestrado ou doutoramento.
11. O primeiro ENED foi organizado na Universidade de Coimbra, seguindo-se a FBAUP e a ESART – Instituto Politécnico de Castelo Branco; o quarto será na Universidade de Aveiro. Estes encontros foram precedidos pelos encontros Café Design, organizados por estudantes entre 1999 e 2002 na FBAUL, ESAD – Caldas da Rainha e Instituto Politécnico de Tomar.
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Escrevi este ensaio entre Setembro e Novembro de 2014 para a Revista Camões, publicada pelo Instituto Camões, cuja edição nº 23 foi dedicada ao design, coincidindo com a celebração do Ano do Design Português em 2015. O convite que o Fernando Brízio me fez no Verão de 2014 – na qualidade de membro do conselho editorial da revista, a par com Alexandra Pinho e a Maria Helena Souto – para participar nesta edição com um longo ensaio sobre os novos territórios do design português constituía um enorme desafio. Dediquei muito tempo a pensar e a escrever sobre este assunto, pois desejava contribuir com uma reflexão sobre o design contemporâneo em Portugal que fosse significativa e duradoura, mas que também pudesse de alguma forma reflectir a minha própria prática e inscrição enquanto crítico de design.
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