No ano em que é Capital Europeia da Cultura (título partilhado com a região da Provença e a cidade de Košice, na Eslováquia), alguns dos seus novos e mais emblemáticos equipamentos culturais estão transformando não só a paisagem, mas a própria história e identidade marselhesas.
Em 1660, Luís 14 mandou erguer à entrada do porto de Marselha o forte de Saint Jean. Incorporando estruturas militares, religiosas e civis existentes desde o século 12, esse complexo arquitetônico pertenceu ao exército durante mais de 300 anos. Em 1944 ficou severamente danificado por uma explosão (acidental) durante a ocupação nazista, época em que foi usado como depósito de munições.
Mesmo depois de ter sido declarado monumento histórico e passado para mãos civis em 1964, nunca foi aberto ao público. Mais do que uma defesa ante um inimigo externo, um ponto de charneira entre o porto velho e o porto novo ou uma barreira entre o centro da cidade e o mar, ao longo dos séculos o forte representou para os marselheses uma forma hostil de controle da cidade, imposto por ninguém menos que o próprio Rei Sol, pelo poder centralizador de Paris. Até hoje.
Numa tarde de verão, o topo do forte de Saint Jean está cheio de marselheses e visitantes. De sua renovada praça de Armas, todos partem à descoberta desse complexo arquitetônico, cujo projeto de restauro ficou a cargo de François Botton e que agora faz parte do Museu das Civilizações da Europa e do Mediterrâneo (Mucem).
Para baixo ficam a capela da Ordem de Malta (século 12), onde está instalada uma parte da coleção permanente do museu, e a torre do Rei René (século 13), ponto privilegiado de observação do porto velho. À volta da praça, antigas casernas albergam bilheterias, serviços e exposições temporárias, enquanto oliveiras, laranjeiras e outras árvores criam o jardim das Migrações, projetado pelo ateliê francês Agence APS.
Sentados a comer, deitados ao sol ou de pé, tirando fotografias da vista única sobre o mar e o novo porto de Marselha, habitantes e visitantes que se encontram dentro dessas muralhas vão passando, aos poucos, pela fina passarela que 115 metros depois termina no telhado rendilhado do J4, o novo e principal edifício do Mucem projetado por Rudy Ricciotti (leia PROJETOdesign 393, novembro de 2012) e Roland Carta – o outro dos três edifícios do museu, projetado por Corinne Vezzoni e destinado a arquivo e reservas, foi recentemente inaugurado junto à estação ferroviária de Saint Charles.
Tal como a passarela de 69 metros que liga o forte ao Panier, o bairro mais antigo de Marselha, este feito de engenharia é o ponto alto do espetacular gesto arquitetônico que faz de uma circulação ininterrupta entre a cidade e o mar uma oportunidade única de passeio e fruição do espaço público. E o percurso não para aqui: chegando ao final da passarela e à esplanada do restaurante no topo do museu, pode-se, mesmo sem comprar ingresso, descer pelas rampas que entre a pele rendilhada externa e a pele envidraçada interior do edifício nos levam à entrada principal no térreo.
Tanto as passarelas como os pilares e a pele rendilhada que envolve duas das fachadas e o telhado do J4 são compostos por elementos moldados em UHPC (concreto de elevado desempenho), desenvolvido pela firma francesa Lafarge e cuja última geração Ricciotti usou aqui, pela primeira vez, em escala monumental. Com força compressora seis a oito vezes superior à do concreto tradicional e resistência ímpar à corrosão química, esse material denso e escuro provou ser o ideal para dar volume e caráter à edificação.
Uma vez lá dentro, percebe-se que o edifício ainda se está se ajustando ao seu programa (ou vice-versa…). Se por fora ele é escuro e misterioso, por dentro é transparente, confuso, caótico. As vistas externas (o mar, o forte, o porto) e internas (áreas técnicas, administrativas e de circulação) tanto surpreendem como atrapalham a visitação aos quase 4 mil metros quadrados de exposições permanentes e temporárias, distribuídos por três pisos.
Assumindo-se como uma metamorfose do Museu Nacional de Artes e Tradições Populares, aberto em 1937, em Paris, no modelo dos museus etnográficos do século 19, o Mucem pretende expandir esse campo disciplinar e incluir outras áreas das ciências sociais e humanidades, para se tornar um museu de civilizações para o século 21.
Em seu gabinete com vista para o mar e ainda cheio de caixas por abrir, Bruno Suzzarelli, diretor deste que é o mais recente museu nacional da França, fala sobre a missão do Mucem, mas sobretudo sobre a reconquista urbana que ele significa. Ainda vazio de conteúdos, mas já cheio de expectativas, o complexo forte/J4 foi aberto ao público no início do ano, antes de sua inauguração oficial, em 7 de junho passado.
Desde então, os dois edifícios já foram atravessados por mais de 200 mil pessoas, entre as quais se contam, enfatiza Suzzarelli, não só turistas e os habitués da vida cultural da região, mas também famílias inteiras de imigrantes magrebinos que vêm da sua periferia para descobrir, muitos pela primeira vez, uma parte da cidade que a eles foi finalmente restituída.
E fazem-no com o orgulho próprio dos cidadãos de uma das grandes metrópoles do Mediterrâneo, e não como os habitantes menosprezados de uma cidade que, apesar de ser a mais antiga e segunda maior de França em população, foi historicamente vista como mais pobre, mais suja e até mais “estrangeira” do que a capital francesa.
Sabendo que o Mucem pretende fazer confluir em Marselha as gentes, as coisas, os saberes e os olhares que ao longo da história foram construindo o Mediterrâneo, observar esse fluxo humano pelo antigo e novo patrimônio da cidade representa de fato uma vitória da arquitetura e do design urbano.
VILLA MEDITERRANÉE
Enquanto o Mucem assenta na esplanada do J4 como um volume monolítico e definitivo, o edifício da Villa Mediterranée parece estar pronto a saltar no oceano.
Elevada em tensão permanente 19 metros acima de um espelho de água com ligação direta para o mar, uma plataforma de 40 metros, o maior vão do gênero na Europa, é uma extraordinária (e polêmica, ao custo de 70 milhões de euros) varanda debruçada sobre o Mediterrâneo.
Vencedor em 2003 de um concurso internacional lançado pela região Provence-Alpes-Côte d’Azur para um Centro Regional do Mediterrâneo, a Villa Mediterranée é um dos poucos projetos concretizados pelo Boeri Studio, o escritório liderado pelo arquiteto, urbanista e teórico italiano Stefano Boeri.
Em 2008, o ateliê foi dissolvido, ficando ativo apenas para projetos em curso, como este. O último e mais conhecido cargo de Boeri foi o de conselheiro para cultura, moda e design do prefeito de Milão Giuliano Pisapia, do qual foi demitido em março deste ano.
Um pouco como a instituição a que serve de casa, este projeto é mais a expressão de uma ideia do que a concretização de um programa. O seu corpo vertical contém uma cafeteria, escritórios e um centro de documentação; mas é a enorme escada rolante que liga o térreo à galeria suspensa sobre as águas que ativa o enorme vão interior, entrecruzado por vigas brancas.
Descendo abaixo do nível das águas pelo elevador exterior, ou pela escada em espiral – uma homenagem de Boeri a Oscar Niemeyer -, chega-se à outra das duas galerias de exposições e ao auditório desta casa que é mais máquina do que edifício, mais navio do que museu. A Villa Mediterranée pretende ser um ponto de passagem para pessoas, criações e ideias em movimento entre a Europa e o Mediterrâneo; as suas primeiras exposições, com grande presença do vídeo e da imagem digital, foram concebidas por dois realizadores de documentários e focam-se tanto nos fluxos à volta do Mediterrâneo como no futuro dos jovens da região.
LA JOLIETTE
Entre as docas e o Panier, o novo porto e a estação ferroviária de Saint Charles fica La Joliette, um antigo bairro industrial cujo nome remonta aos tempos romanos (foi aqui que Júlio César assentou o seu exército) e cuja história está sendo radicalmente transformada. Este é o centro da maior operação de renovação urbana atual no Sul da Europa: o projeto EuroMediterranée.
Desde 1995, mais de 7 bilhões de euros foram investidos na renovação de infraestruturas portuárias e de transportes, e na construção de quarteirões de escritórios e habitação, mas também em equipamentos culturais projetados por arquitetos de renome internacional. São eles que prometem uma atenção maior à cidade, um há muito prometido desenvolvimento econômico à região e um novo orgulho aos seus cidadãos.
Além dos já visitados Mucem e Villa Mediterranée, estes incluem a sala de concertos Le Silo (Roland Carta, Eric Castaldi), a torre CMA CGM (Zaha Hadid), o Frac-Paca (Kengo Kuma), a qualificação e novo pavilhão do velho porto (Norman Foster) e, ainda por inaugurar, o complexo Euromed (centro: Massimiliano Fuksas; estação: Jacques Ferrier) e os Les Quais d’Arenc (Jean Nouvel).
FRAC-PACA
Numa das extremidades da Joliette fica um dos mais novos Fracs do país. Estabelecida há 30 anos, a rede Fonds Régionaux d’Art Contemporain pretende colecionar, mostrar, fazer circular e apoiar a produção de arte contemporânea em todas as regiões da França. Desde o início do século 21 esta rede, inicialmente pensada “sem lugar”, passou a contar com uma geração de centros culturais projetados por arquitetos franceses e estrangeiros.
Em 2007 foi lançado o concurso para o novo Frac da região Provence-Alpes-Côte d’Azur (Paca), em pleno perímetro da Joliette e numa área de pouco mais de 1,5 mil metros quadrados. Inspirado pela ideia de “museu sem paredes” de André Malraux, o japonês Kengo Kuma projetou, neste estreito gaveto triangular de um quarteirão antigo, quatro espaços de exposições, um centro de documentação, um espaço pedagógico, duas residências de artistas, um restaurante e uma enorme varanda com vista para uma zona totalmente nova da cidade.
É um edifício desconcertante, elegante, de uma surpreendente simplicidade e joie de vivre. Do lado de fora, 1,5 mil painéis de vidro translúcido – entre o pixel e a lantejoula -, suspensos obliquamente à fachada exterior, tanto escondem como revelam o concreto da construção, o interior do museu ou o céu azul do verão. No interior, esse “museu sem paredes” é também uma enorme “janela indiscreta”, já que todos os espaços de circulação têm vista para as varandas, as fenestras e as vidas dos vizinhos no outro lado do estreito saguão.
Um destaque especial deve ser dado ao projeto de identidade visual e sinalética deste Frac, de autoria dos designers parisienses Marie Proyart e Jean-Marie Courant, desenvolvido ao abrigo da lei francesa do “1% artístico”. Em geral, essa legislação canaliza 1% do orçamento de uma obra pública para a encomenda e produção de uma obra “de decoração”, tradicionalmente uma obra de arte.
Não sendo a primeira vez que um projeto de identidade visual é desenvolvido e financiado por meio dessa lei, não deixa de suscitar várias questões sobre o papel do design gráfico num projeto de arquitetura (é decoração? É arte?) ou numa instituição como o Frac.
QUAI DE LA FRATERNITÉ
Dando a volta ao Panier pela rue de République, o Frac fica apenas a alguns minutos a pé (ou, melhor ainda, numa das bicicletas da cidade) do velho porto. Centro econômico marselhês desde a Antiguidade até a abertura do novo porto em meados do século 19, permaneceu como região turística e cultural da cidade sobretudo depois de sua margem norte, destruída pelos nazistas em 1943, ter sido reconstruída entre 1947/53 pelo grande arquiteto de Marselha Fernand Pouillon.
Sessenta anos depois, no início de março, o prefeito Jean-Claude Gaudin inaugurou a mais recente remodelação do coração da cidade. O projeto de paisagismo de Michel Desvigne, que teve a acessibilidade da água como seu principal desígnio, incluiu uma remodelação das estruturas de apoio às embarcações e instalações técnicas e um novo pavimento de granito que chega mesmo até a água.
Na margem leste do porto, o pavilhão de eventos do chamado Quai de la Fraternité, projetado por Norman Foster, atrai as atenções. Essa estrutura de uma simplicidade deslumbrante parece não ser mais que uma fina folha de aço inoxidável, de 46 metros de comprimento por 22 de largura, pousada em oito finos cilindros do mesmo material.
Quase invisível de qualquer outro lado, a superfície totalmente refletora da cobertura torna-se de imediato uma tela para todos os que passam debaixo dela. É por isso impossível resistir à vontade de olhar para cima, de procurar o nosso reflexo ou o dos outros. Apesar de ter o propósito tão prático como aberto de albergar eventos, mercados ou todo o tipo de celebrações, esse pavilhão é na verdade uma exemplar criação de um ponto de encontro, de atenção, de um lugar, no que é hoje uma das maiores praças da Europa.
É daqui que, olhando para a margem do porto reconstruída por Pouillon, tento imaginar como seria se tivesse sido Le Corbusier a fazê-lo – um projeto, aliás, que ele tanto ambicionou.
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Esta artigo sobre a nova arquitectura de Marselha foi publicado no número 403 da revista Projeto Design em Setembro de 2013.
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