Uma nova vida para a caixa de jóias da Europa

Rudolfo II, patrono das artes e das ciências e o maior coleccionador dos Habsburgo, ao centro da sala principal da nova kunstkammer de Viena @ Brigida Gonzáles
Rudolfo II, patrono das artes e das ciências e o maior coleccionador dos Habsburgo, ao centro da sala principal da nova kunstkammer de Viena @ Brigida Gonzáles

Reabriu a kunstkammer de Viena. Ao fim de onze anos de obras, o gabinete de curiosidades dos Habsburgo revela agora, numa nova e sofisticada apresentação, a história e a ambição de uma dinastia, mas acima de tudo o talento, a sensibilidade e a curiosidade da civilização europeia. Frederico Duarte

A par do Louvre, do Prado, do Metropolitan e do Hermitage, o Kunsthistoriches Museum, ou Museu de História de Arte de Viena, é um dos grandes, obrigatórios e superlativos museus do mundo. Tal como os outros, este repositório monumental da arte, da riqueza e do poder dos seus fundadores, guardiões e cidadãos, exige não umas horas, nem um dia, mas uma vida inteira para ser visitado. Como se uma vida não bastasse, desde 1 de Março há uma renovada razão e 21 novas galerias para visitar: a kunstkammer de Viena.

Galeria XXXII © Kunsthistorisches Museum Wien
Galeria XXXII © Kunsthistorisches Museum Wien

Galeria de conhecimento
A ideia moderna da colecção surge na Europa no fim do século XV, quando soberanos, nobres e outros cidadãos adquirem e se rodeiam de objectos não só pelo seu valor utilitário ou sagrado, mas pelo seu valor conceptual. É então que o acto de coleccionar se torna uma expressão individual e pública de grandiloquência e erudição. Chamadas de kunst- e wunderkammer, ou gabinetes de curiosidades, estes protomuseus eram tidos como reflexos pessoais do universo, e como tal também do conhecimento contemporâneo do mundo. Colocados em armários, gabinetes e estantes, mas também pendurados nas paredes e do tecto, estes artefactos eram escolhidos pela sua qualidade artística e virtuosidade, antiguidade e preciosidade, e organizados de forma sistemática e enciclopédica, sob as categorias de artificialia (artefactos produzidos pelo homem), naturalia (manifestações de fauna, flora e minerais), scientifica (instrumentos para o estudo do mundo e do universo), memorabilia (mementos), mirabilia(curiosidades e objectos incomuns) e exotica (objectos vindos ou produzidos em terras e civilizações longínquas). Reflectindo os tempos de questionamento do homem e do universo que foram o Renascimento e o Maneirismo, estes objectos eram guardados não para serem usados, nem para serem apenas contemplados, mas para serem interrogados.

A Saliera de Benvenuto Cellini. Ao fundo, a tapeçaria "A Unidade do Estado", representando Francisco I de França, de Francesco Primaticcio, Rosso Fiorentino e Claude Badouin, entre outros. © Kunsthistorisches Museum
A Saliera de Benvenuto Cellini. Ao fundo, a tapeçaria “A Unidade do Estado”, representando Francisco I de França, de Francesco Primaticcio, Rosso Fiorentino e Claude Badouin, entre outros. © Kunsthistorisches Museum

Um saleiro, muitas histórias
A peça mais mediática e valiosa da nova kunstkammer é um bom exemplo da história e histórias por trás de cada das 2200 peças desta colecção. Três anos depois de o cardeal Ippolito d”Este rejeitar o projecto de Benvenuto Cellini para um saleiro (saliera em italiano), em 1543 um dos artistas mais famosos do seu tempo consegue que o seu novo patrono, Francisco I de França, lhe encomende a sua única obra de ourivesaria. Esculpido em ouro, este saleiro é uma delicada cosmografia composta de ambiguidades e alegorias tão característico do Maneirismo: Neptuno e Telo, deuses da água e da terra, homem e mulher; ao seu lado, um barco para o ouro branco do mar, um templo para o ouro negro da terra; na base, cavalos marinhos, representações das horas do dia, dos quatro ventos e as armas de França. O que faz com que a Saliera seja também uma sofisticada obra de propaganda, mostrando aqui e em qualquer mesa de jantar que quem controla o cosmos são os eternos rivais dos Habsburgo, para quem o mecenato das artes e das ciências era mais uma forma de luta pela hegemonia europeia.

O ímpeto coleccionador dos Habsburgo, que regeram o sacro-império romano de 1273 até à sua dissolução em 1806, teve o primeiro grande impulso no fim do século XV com Maximiliano I e os seus dois herdeiros, Carlos V e Fernando I, que em meados do século XVI converte Viena na capital do ramo oriental do império sacro-romano. É aqui que acolhe artistas e cientistas, apadrinha o estudo da natureza e ordena a organização dos bens da coroa de acordo com o seu valor artístico numa colecção de “antiguidades, instrumentos e obras de arte”. Quando, em 1570, o seu filho Fernando II, arquiduque do Tirol e irmão do sacro-imperador Maximiliano II, substitui Carlos IX de França no seu casamento por procuração com uma arquiduquesa austríaca, este agradece o favor oferecendo-lhe quatro valiosos objectos do tesouro francês: é assim que a Saliera chega ao Castelo de Ambras, perto de Innsbruck, onde é mostrado numa das mais famosaskunstkammer dos Habsburgo. Esta impressiona o seu sobrinho, Rudolfo II, que por lá passa entre Madrid – onde vive a juventude com o tio, Filipe II de Espanha – e Viena, capital do império que, em 1583, depois de coroado imperador, muda para Praga.

Exotica, Clement Kicklinger 1570/75, Augsburg © Kunsthistorisches Museum Wien
Exotica, Clement Kicklinger 1570/75, Augsburg © Kunsthistorisches Museum Wien

É aqui que, em vez de governar, Rudolfo cria, num excepcional paraíso de tolerância religiosa, uma prolífica corte de pintores, escultores, ourives, astrónomos, naturalistas ou alquimistas. E onde constrói a maior e mais prestigiada kunstkammer de todos os tempos, para a qual são trazidos ou criados os mais extraordinários objectos que vemos na kunstkammer de hoje. Na principal galeria desta, a ele dedicada, podemos ver autómatos, taças em pedras semipreciosas, retratos e objectos utilitários em marfim; noutra galeria, a sua colecção de exotica reúne objectos mirabolantes, muitos sem qualquer uso, feitos a partir de cocos, nozes das Seychelles, chifres, corais e outras extravagâncias naturais e minerais, bem como arte indo-portuguesa trazida pelos navegadores do mundo para Lisboa e de lá para Praga. A vontade de constituir em Praga uma única colecção da dinastia leva o imperador a comprar o castelo de Ambras mas, deposto pelo irmão pouco tempo depois, a sua própria colecção atomiza-se pela Europa, sobretudo após o saque de Praga pelas tropas de Cristina da Suécia. Apenas uma parte chegou aos nossos dias.

Só em 1891 é que a Saliera de Cellini – retirada do Tirol em 1806, depois da cedência do território ao reino da Bavária – é de novo apresentada ao público, quando o último grande imperador austro-húngaro, Francisco José I, consolida em Viena e reorganiza o melhor das colecções dos Habsburgo. É então inaugurado o monumental edifício projectado para guardar e mostrar aos súbditos e visitantes do império obras da antiguidade e pintura, gravura e escultura europeia, mas também a “Colecção de Artes e Ofícios”, uma de tantas versões que a kunstkammer imperial foi conhecendo ao longo dos séculos.

É já durante as obras da última versão, a de hoje, que a Saliera conhece mais um episódio da sua história: furtada em 2003 por um perito em sistemas de segurança, esteve desaparecida durante mil dias até ser encontrada numa caixa de chumbo enterrada a 100 quilómetros de Viena. Sofreu apenas um ligeiro arranhão. Está hoje avaliada em 50 milhões de euros.

Galeria XXX © Kunsthistorisches Museum Wien
Galeria XXX © Kunsthistorisches Museum Wien

A terceira vida dos objectos
Como recriar uma kunstkammer no início do século XXI num edifício do fim do século XIX? Antes de mais, grande parte dos 18 milhões de euros gastos nesta renovação – 15 milhões pagos pelos contribuintes – destinaram-se a conservação, restauro, segurança e climatização. Ou seja, não se vêem. O que se vê, isto é, a actual instalação, é uma “tríade de espaço, obras de arte e visitantes”, como a descreve HG Merz, o arquitecto alemão responsável pelo projecto. Para ele, os objectos agora apresentados vivem uma terceira vida: depois de existirem no seu contexto original, de serem vistos e admirados passivamente como peças de museu, eles são agora reorganizados e reactivados para uma geração de visitantes que, como Franz Kirchweger, curador-chefe da kunstkammer assume, “exigem, mais do que as anteriores, conhecer as suas histórias”. O seu objectivo, diz Merz, foi satisfazer tanto aneugier como a altgier – aforismos de Nietszche que descrevem a curiosidade pela descoberta de coisas novas e/ou amor pelas coisas velhas – dos visitantes.

Iluminados dentro de sóbrias vitrines de vidro e metal negro que povoam as galerias deixadas a média luz – os lustres foram projectados pelo artista islandês contemporâneo Olafur Eliasson – estes artefactos são também revelados em fotografias e vídeos acessíveis em tablets colocados nos bancos das galerias, as quais mostram outras vistas alternativas, fornecem mais informação ou, como no caso dos autómatos (relógios, centros de mesa e outros), mostram os seus mecanismos em funcionamento, com um muito austríaco toque de humor.

Tanto curadores e conservadores como arquitectos e designers rejeitaram “encenar” uma nova kunstkammer. Definiram, ao invés, uma estrutura narrativa para a colecção que, centrada em quem a construiu ao longo dos séculos, falasse do que une estes objectos de engenho, assombro, memória, superstição, conhecimento, curiosidade, devoção e poder. Numa linguagem clara e concisa, revelam-nos em textos de parede e legendas expandidas (sem contar com os audioguias e novíssima app) as intenções dos artistas que criaram estes objectos e interpretações do seu significado, mas sobretudo as ambições dos soberanos que os trouxeram aqui. Tal como nos conta aSaliera, cada um destes objectos esconde a complexa e fascinante história de uma dinastia e de um continente que agora nos é, mais uma vez e melhor que nunca, revelada.

Este texto foi publicado no dia 9 de Março de 2013 no suplemento Fugas do Público, pouco mais de uma semana depois da minha curta estada em Viena para a visita à imprensa e divertida inauguração da Kunstkammer. Até apareci na ÖRF.