No meio da voracidade do consumo, Álbio e Kathi propõem uma “natural lentidão sustentável”. E é esse ponto de vista sobre as coisas – contemplativo, sensorial – que dá personalidade ao trabalho dos The Home Project.
Álbio Nascimento e Kathi Stertzig vivem na Wrangelstrasse, em Berlim: este é, desde Janeiro, o mais recente dos vários endereços da sua residência, eles que nos últimos anos já passaram por Antuérpia, Faro e Hannover. Ele, português do sul, ela, alemã do norte, conheceram-se em Milão, onde, em 2000, frequentaram o Politecnico di Milano através do programa Erasmus — o que explica a curiosidade de falarem um com o outro em italiano. Em 2001, Kathi entrou no curso “Man & Humanity” na Design Academy de Eindhoven, e Álbio regressou a Lisboa, terminando em 2003 a licenciatura em Design de Equipamento na Faculdade de Belas Artes. Encontram-se de novo mais tarde, e a partir de 2005 partilham uma morada e um nome: The Home Project.
São designers, e olhando tanto para as carreiras individuais, como para o percurso partilhado, conseguimos caracterizá-los como designers de equipamento ou de produto. No entanto, e ao contrário da maior parte dos designers, preocupados principalmente por verem realizadas – e consumidas – as suas criações, eles são os primeiros a criticar o próprio mundo que irão potencialmente alimentar. “Diz-se muito que vivemos num mundo materialista. Pelo contrário, nunca houve tanta falta de respeito pela matéria, nem uma cultura material tão fútil”, dizem. Se a produção industrial alimenta desde o séc. XIX o consumo, cada vez mais voraz, de recursos e bens materiais, muitos destes bens são objectos e produtos desenhados, criados para uma função ou uso específico por profissionais qualificados. Desde uma caneta BIC a um pacote de batatas fritas (incluindo o ondulado das próprias batatas), passando por um televisor ou um Boeing 747, todos estes produtos são produzidos, multiplicados e consumidos todos os dias por cada vez mais pessoas, cada vez mais depressa. Álbio e Kathi observam o que se passa à sua volta e a essa voracidade, a essa rapidez, respondem com o que chamam de uma “natural lentidão sustentável”. Álbio ilustra: “As artes do cinema ou da música têm essa vantagem: a duração. Exigem um tempo de dedicação. Não se ouve um disco em dois minutos, mas não se pousa o olhar sobre um objecto, com os sentidos abertos a uma compreensão profunda, por mais de dois segundos. E, posteriormente, não se passa talvez horas a falar dele. Isto não é ofensivo ou falta de respeito, não é pessoal, mas é uma pena. Neste planeta continua-se a fazer mais ‘coisas’, cada vez mais, sem sequer se ter ainda percebido ou fruído completamente as que estão feitas.”
Tendo dito isto, o que fazer a seguir? Parar de fazer, parar de projectar e simplesmente contemplar o que nos rodeia? Não necessariamente: “Tanta conversa sobre objectos, e no fundo passamos muito mais tempo a discutir o que se passa à volta deles. O que importa para nós não é o objecto em si, mas tudo o que e se comunica, provoca e como desenha as situações. Desenhar o resto, o comportamento.”
E é esse ponto de vista sobre as coisas – contemplativo, sensorial, mas ao mesmo tempo inquisitivo e interventivo – que informa o seu discurso, e dá personalidade ao seu trabalho. Dizem ver o design como “um catalisador, um agente dinâmico que junta recursos e os põe a trabalhar”. Algo que desencadeia uma cadeia de acontecimentos, acções e reacções. Como tal, a sua actividade como designers não se esgota nos objectos; inclui, sim, outros tipos de recursos e de processos, dos quais as pessoas são também uma parte, chegando mesmo a ser o seu elemento fundamental.
Beleza ilegal
Exemplo disso são as três plataformas que criaram e desenvolveram com outras pessoas, em diferentes pontos da Europa. Em 2005, e durante a passagem por Antuérpia, aperceberam-se que muitos dos refugiados e imigrantes ilegais residentes na Flandres – oriundos de países como a Turquia, Marrocos ou República Democrática do Congo – e desprovidos de direitos e de trabalho no seu país de acolhimento, eram artesãos ou sabiam pelo menos um ofício. Sabendo disso, quiseram olhar para lá do rótulo de imigrante ilegal destas pessoas “invisíveis” aos olhos da lei, e criaram outro rótulo, outra marca. Esta marca, uma borboleta presa por arame farpado, representa a rede cultural Illegal Beauty, que pretende promover a colaboração entre indivíduos, comunidades e organizações que se ocupam das “pessoas sem papéis”. Uma das acções passou pela venda legal de produtos feitos por artesãos ilegais, mas em colaboração com outros designers. Ao fazê-lo, questionaram o termo “ilegal”, e abriram o debate para o papel que estas pessoas desempenham na criação, economia e ultimamente na sociedade de uma cidade, região, país ou todo um continente. Em vez de apenas números em estatísticas de imigração, ou de bodes expiatórios para partidos de extrema direita, estes imigrantes – dotados de uma cultura, uma história e herdeiros de tradições e “formas de fazer” muitas delas já esquecidas na Europa desenvolvida – vêem ser-lhes devolvido o estatuto de indivíduos, e reconhecida a sua realização social.
Beleza sustentável
Em Portugal, estiveram na génese da Designforfuture, colectivo criado em 2006 dedicado à promoção do design sustentável e à sensibilização ambiental, a partir da qual nasceu a exposição anual que têm comissariado para Olhão, integrada na Feira de Parques Naturais e Ambiente (Galeria da Restauração do Museu da Cidade de Olhão até 30 de Agosto). “Tentamos com esta exposição promover uma abordagem inovadora e mais ‘difícil de digerir’ a toda esta onda da ‘sustentabilidade’ tão em voga. Ao mesmo tempo, quisemos mostrar uma colecção de projectos que dessem uma visão diferente do que o mundo pode ser. Dar inspiração às pessoas. Queríamos romper esses ‘conceitos rápidos’ de eco-materiais e design sustentável, e trazer ideias novas à questão da sustentabilidade, que é mais do que usar o vidrão…”
Beleza total
De volta a Berlim, e embora tenham mostrado relutância ao início em mudar-se para cidade do “hype criativo” europeu, reconhecem ter encontrado o enquadramento ideal para o seu estado de espírito: Berlim é uma cidade “em construção, ‘low profile’, aberta. É fácil obter informação, trocar ideias, estabelecer ligações com pessoas e instituições com interesses semelhantes.” Algo visível na sua associação a outros indivíduos com as mesmas preocupações sociais e ambientais, ao terem participado na plataforma online “Dropping Knowledge” para a cobertura da cimeira do G8 em Rostock, ou ao co-criarem a “cooperativa criativa” Propandesign, que desenvolve projectos com base em “conceitos totais”. O trabalho dos The Home Project parece ser à primeira vista intangível, tal é a sua natureza, o âmbito e os recursos nele envolvidos. E durante bastante tempo assim o foi: dizem-se agora numa fase de transição, onde estão a começar a aplicar os mesmos princípios presentes nos seus projectos sociais e ambientais, e criar objectos e produtos que estejam de acordo com aquilo em que acreditam. “No fim de tudo, o que fazemos está sempre associado a atribuição de significado. É isso que nos leva a ‘re-desenhar’, re-pensar algo, a intervir. O que nos chama a atenção para as coisas – ver como o valor intrínseco de algo belo, delicado ou complexo (de fazer, construir, criar, ..) fica esquecido na facilidade moderna. Por vezes queremos forçar mais valor ou carga semiótica a um objecto, espaço ou ambiente. Outras vezes, preferimos retirá-lo ou humilhá-lo um pouco para relembrar a ‘dificuldade’ interpretativa de tudo – a beleza inerente na duração da compreensão das coisas.”
Publicado originalmente no suplemento Ípsilon do jornal Público de 17.08.2007