No mapa do design português que estamos a percorrer, eis uma carreira que é um hábil equilíbrio entre obstinação e pragmatismo. Personifica uma aspiração maior do design industrial português: experimentação e compreensão das necessidades do mercado para o qual terá de vender.
Para os gregos, o acto de “hybris” constituía o que ultrapassava a medida humana, o excesso, a desmesura, a insolência, o ultraje do homem na pretensão de competir com os deuses. O termo “hybris”, que caracteriza essa pretensão de os humanos quererem ir para além da sua esfera natural de existência, possui também o sentido metafórico de orgulho, de arrebatamento ou de impetuosidade. O seu antónimo, “sophrosyne”, caracteriza a disposição sadia do espírito, a moderação, a prudência que advém do autoconhecimento. Para Alda Tomás, se “Hybris” é o nome de uma das suas peças mais queridas, a sua carreira com quase dez anos é, no entanto, um hábil equilíbrio entre a primeira e a segunda “abstracções” gregas, entre a obstinação – ela admite mesmo a sua origem tauriana – e o pragmatismo.
Terminando a sua licenciatura em 1997, hesita entre a música e o design – divide-se na altura entre o curso de Design de Equipamento na Faculdade de Belas-Artes, e o curso de Piano no Conservatório de Lisboa – mas, e com uma curta experiência no ensino secundário pelo meio, toma o passo, nem sempre fácil, de começar uma carreira como designer industrial.
Em 1999, abandona a disciplina do piano e ruma à Marinha Grande, onde começa a trabalhar na empresa Jasmim, primeiro como estagiária e logo depois como colaboradora “freelance”. Fazendo parte do programa de inserção de “designers” na indústria da cristalaria – parceria entre o Centro Português de Design e a MGlass – a sua aprendizagem na indústria do vidro e do cristal é feita “in loco”, e é nesta altura que tem contacto não só com as artes do vidro, mas também com a realidade, os requisitos e as limitações da profissão de designer industrial. E, quando se diz industrial, é no verdadeiro sentido da palavra: Alda Tomás não é uma designer industrial — ou de produto, ou de equipamento – de atelier, é uma designer da indústria, na indústria.
Hybris
A sua jarra “Hybris” é disso exemplo: concebida no tempo recorde de três meses, nasceu da sua insistência para com os mestres vidreiros da Jasmim – em particular com o mestre vidreiro António Esteves – em desafiar processos de produção e de sopro de vidro para fazer o impossível: “Quando apresentei os desenhos, o efeito que tinha dentro da peça — uma cor que flutua com outra cor a sair do seu interior — foi considerado impossível de ser feito. Esse efeito resultava da junção de duas técnicas: a do encamisado, que se usa nas peças ‘doublé’ e onde a peça de vidro é revestida de uma camada de pigmento, e a da inclusão de cor, donde resultam peças com uma cor no interior de uma camada de vidro. O mestre vidreiro António Esteves conseguiu juntar essas duas técnicas e graças à sua mestria a peça foi possível de ser feita”.
A Jasmim é uma empresa pequena, com cerca de seis pessoas, e onde existe não só uma estreita colaboração entre designer e mestre vidreiro, entre concepção e concretização, mas também um controlo total de todo o processo produtivo. “Hybris” só poderia ter nascido desta proximidade, desta cumplicidade. No entanto, esta forma não proveio de qualquer inspiração divina: a Jasmim integrava nessa altura o colectivo de empresas que constituiu a marca MGlass, e as colecções, destinadas ao segmento topo de gama dos seus clientes, eram realizadas de acordo com as directrizes da conhecida empresa francesa de tendências Nelly Rodi – ou seja, o que poderia parecer à primeira vista uma forma resultante do livre arbítrio do seu criador foi, contudo, condicionada por características indicadas por especialistas em tendências: neste caso, vidro pesado e contrastes mate/brilhante e transparente/opaco. Qualidades suficientemente abstractas para serem abertas à interpretação de cada “designer”, mas indicadoras de uma tendência concreta e “vendável”. A jarra “Hybris” tornou-se mesmo a peça mais conhecida de Alda Tomás, tendo feito parte do livro “Best of” do Centro Português de Design, e da exposição retrospectiva dos últimos 15 anos do design português “(P) Design de Portugal 1990-2005”, apresentada em 2004 e 2005 em Milão e em Lisboa.
O design do fogo
Até 2003 Alda continua a trabalhar na Jasmim, colaborando também com outras empresas da região, mas é nesse ano que começa a ser responsável pelo desenvolvimento e acompanhamento de novas formas na SPAL. Esta empresa, fundada em 1965, é uma das maiores produtoras e comercializadoras de porcelana para uso doméstico e hotelaria em Portugal, conta com mais de 600 empregados e tem na zona de Alcobaça duas unidades fabris com 60 mil metros quadrados, uma delas completamente automatizada. Produz mais de 14 milhões de peças de porcelana por ano, exporta 70 por cento da sua produção, e, para além da marca própria, bem conhecida em Portugal (tem actualmente 12 lojas SPAL) e em franca expansão, produz para outros clientes e mercados, com especial incidência na Europa e América do Norte.
Um grupo empresarial radicalmente diferente da pequena empresa familiar onde começou, mas não é que isso a tenha intimidado. Para Alda, são precisas “cabeças diferentes” para trabalhar na Jasmim e na SPAL: entre o processo mais artístico, mais delicado e individual das peças em vidro da primeira, e os serviços de porcelana produzidos aos milhares de unidades da segunda, há todo um mundo de diferença. Têm, porém, uma coisa em comum: ambas são tecnologias, ou artes, “do fogo”. Se no vidro se funde sílica (areia) a altas temperaturas para chegar a uma pasta incandescente e moldável, na porcelana molda-se, e coze-se em fornos, uma pasta cerâmica (composta por sedimentos minerais) para atingir as formas finais desejadas. Os processos variam de acordo com a complexidade das peças, assim como varia a maquinaria e a mão-de-obra envolvidas.
Na SPAL, e derivado à escala e natureza dos produtos, o processo de criação restringe-se ao ensaio no laboratório/sala de modelação, onde esboços e desenhos técnicos dos “designers”, os cálculos dos engenheiros e a mestria dos modeladores dão origem a novas formas, que serão ensaiadas nas máquina, em intervalos de produção. Estas condicionantes produtivas, juntamente com decisões estratégicas da empresa, índices de produção, estudos de vendas e encomendas específicas levam a que todo o processo conheça tempos muito diferentes: “Por exemplo, um dos trabalhos que estou a desenvolver, neste momento, é um serviço composto de pratos, chávenas, travessas, saladeiras… Um serviço nunca demora menos de um ano e meio a ser desenvolvido, desde os primeiros esboços até ao seu lançamento em feiras. Mas se desenvolver uma peça ‘gift’, o período de tempo pode ser de três meses, no mínimo. Depende da complexidade da forma e da produção e das prioridades que a fábrica tiver nessa altura.”
Sophrosyne
Todas estas limitações técnicas, temporais ou de mercado não são para Alda Tomás uma fatalidade, mesmo que admita muitas vezes simplesmente esquecer tudo isso e criar objectos, tanto utilitários como “de decoração” – os chamados “gifts”, no jargão da indústria – que desafiem os próprios processos de produção da empresa e busquem uma espécie de desígnio maior. Mas mais uma vez a sua “hybris” é contrabalançada pela correspondente “sophrosyne”: para ela, a forma continua a seguir a função, os seus pés continuam na terra. Mas também o contrário se verifica: mesmo quando desenha coisas tão utilitárias como um serviço de chá tem em conta que “vamos viver com aqueles objectos todos os dias, por isso tem sempre de haver uma paixão dentro deles, têm sempre de encantar”. Além disso, tudo isto tem sempre também que vender, e Alda não tem ilusões quando diz que “um ‘designer’ quando trabalha com a indústria tem sempre de ter um sentido comercial, tem de ter a noção que contribui para a empresa ganhar dinheiro, o que por sua vez lhe atribui uma maior liberdade”. Uma liberdade para criar proporcional à saúde financeira da empresa para a qual trabalha, e da qual não se deve esquecer: “Um ‘designer’ deve conhecer o mercado, não fazer coisas apenas para si, e satisfazer-se a si mesmo.”
É também de forma apaixonada, mas ao mesmo tempo cautelosa, que fala do estado da indústria vidreira e cerâmica nacional. Esta indústria, grande parte da qual sediada no Oeste português – entre Leiria, Marinha Grande, Alcobaça e Caldas da Rainha – não tem tido, nos últimos anos, uma evolução… equilibrada, à falta de melhor termo. Experiências falhadas como a MGlass/Vitrocristal – o projecto empresarial que chegou a ser visto como a jóia da coroa da internacionalização do design português, mas cuja insolvência foi declarada no fim do ano passado – ou o fecho recente de algumas empresas da região são sinais de uma indústria que ou dá passos maiores que a perna, ou que continua resistente à inovação, ao risco ou à exigência da qualidade, perdendo de ambas as formas clientes, mercados e dinheiro, e prejudicando a imagem da indústria e da economia portuguesas.
O equilíbrio
Alda Tomás tem prazer no que faz, e isso vê-se. A forma como mostra o seu trabalho, como conduz a visita à fábrica, como fala com os empregados, desde os engenheiros à designer das decorações (elementos gráficos decalcados nas peças) e às senhoras que fazem pegas de chávenas todos os dias há 14 anos. Esse prazer não se restringe à SPAL.
Integra, juntamente com outros 11 designers, o projecto Visibilidades, apresentado há semanas em Leiria. Esta iniciativa, da autoria de um colectivo de designers da Marinha Grande, surge como forma de aproximar a nova geração do design português às técnicas tradicionais que envolvem a produção de vidro e pretende dar maior visibilidade ao design e à produção de vidro em Portugal. O seu trabalho estará também presente no fim de Setembro, em Lisboa, na exposição “Remade in Portugal”, a edição portuguesa da “Remade in Italy”, que se realiza em Itália desde 2004. Em Portugal foram convidados 15 designers e arquitectos para conceberem objectos e produtos de construção produzidos com materiais reciclados, chamando a atenção para a reutilização de desperdícios, tanto pós como pré-consumidor, como ilustram as suas taças “Attitude” feitas a partir de lamas da ETAR da SPAL.
Alda personifica uma aspiração maior do design industrial português. O seu trabalho alia audácia na concepção das formas e experimentação e conjugação criativa de materiais com extrema sensibilidade e compreensão das necessidades da empresa para a qual trabalha, do mercado para o qual esta terá de vender, e, em último caso, das pessoas que usarão as peças. Esse equilíbrio não é fácil de encontrar, e não só em Portugal.
Publicado originalmente no suplemento Ípsilon do jornal Público de 03.08.2007