Quando o designer mais famoso do Brasil chegou a Várzea Queimada, uma remota povoação do também remoto estado do Piauí, foi recebido com foguetes, discursos, as chaves do município e forró. Marcelo Rosenbaum é praticamente desconhecido fora do seu país, mas mesmo no Piauí profundo não consegue andar na rua sossegado. A sua fama não vem tanto dos objectos ou interiores que projecta, mas do seu programa de televisão, onde melhora as casas e vidas dos telespectadores. Nessa noite ele começou, em Várzea Queimada, a segunda edição do A Gente Transforma (AGT), um dos mais ambiciosos e influentes projectos do design brasileiro de hoje e que também muda os lugares e as pessoas que lá vivem.
Rosenbaum não chegou sozinho. Trouxe arquitectos especialistas em permacultura, estudantes universitários, designers de produto portugueses e brasileiros, directores de arte, fotógrafos, jornalistas, uma equipa de realização e dois mestres espirituais. Os seus objectivos para as duas semanas seguintes passavam por beneficiar/ construir uma nova estrutura para a comunidade que servisse de exemplo para a construção e melhoramento de outras edificações, mas também para criar uma colecção e respectivo catálogo de produtos que possam gerar maior e melhor rendimento aos seus artesãos. E ainda um documentário e um livro com as histórias de quem chegou e de quem ficou.
Em pleno semiárido nordestino, a cinco horas de estrada de Teresina, capital do Piauí, Várzea Queimada é um povoado onde 900 pessoas — divididas entre duas famílias que incluem 47 surdos-mudos — vivem do que cultivam (quando chove), sem saneamento e com escasso acesso a água. Muitos jovens deixam a escola e partem para São Paulo à procura de trabalho, engrossando as favelas da cidade. Outros dependem de reformas ou de subsídios como o Bolsa Família. A única alternativa a esta dependência é produzir. As mulheres entrançam palha de carnaúba, uma palmeira local, e dela fazem chapéus, esteiras e outros objectos de uso comum. Os homens esculpem, a partir de borracha de pneu de camião, cópias de chinelos Havaianas que vendem na feira ou a caixeiros- viajantes que passam pela aldeia e levam o seu artesanato a toda a região.
Modernismo brasileiro útil
Marcelo Rosenbaum é conhecido não tanto pelas lojas, restaurantes e apartamentos onde conjuga, de forma tão extravagante quanto sofisticada, elementos da cultura urbana com clássicos do modernismo ou referências do imaginário popular brasileiro. Nem pelas suas linhas de produto e mobiliário. É famoso por causa de Lar Doce Lar, a rubrica mensal do programa O Caldeirão do Huck (Rede Globo) e uma espécie de Querido Mudei a Casa adaptado à escala, população e emoção brasileiras. E como a televisão chega a 99,5% dos 190 milhões de brasileiros, ele é visto por muita gente.
Rosenbaum tem empregue a sua popularidade em projectos que apelida de “design útil”. Um deles é AGT, estreado em 2010 no Parque Santo Antônio em São Paulo, onde foi dada uma nova cara ao entorno do único espaço de lazer da favela — o campo de futebol — com a ajuda de universitários, patrocinadores e media. Impressionado com os resultados, o Ministério da Integração Nacional convidou-o a levar o projecto à Chapada do Araripe, uma área dividida entre os estados do Ceará, Pernambuco e Piauí com um dos piores índices de desenvolvimento humano do Brasil. Com o aval do governo local e a participação da Agência de Apoio ao Empreendedor e Pequeno Empresário, que promoveu já muitos projectos de colaboração entre designers e artesãos, a Várzea Queimada foi escolhida pelo potencial dos seus artesãos.
Artesanato à sombra
Ali, e durante duas semanas, os arquitectos Henrique Pinheiro e Tomaz Lotufo e 18 estudantes conceberam e construíram uma casa dos artesãos, no que foi um processo colaborativo com a população local no projecto e na prática. Uma lavandaria abandonada deu lugar a dois edifícios, construídos em terreno público segundo critérios da permacultura — como adaptação ao relevo, (re)utilização de materiais locais, estruturas de sombra ou ventilação natural. Ergueram-se uma cisterna e açudes para reter as águas da chuva. Plantaram-se árvores, um coreto e um parque infantil. Chegada à madrugada do último dia do projecto, dia 15 de Fevereiro, nem tudo estava pronto, mas o futuro da casa, bem como do trabalho que será feito no seu interior, à comunidade pertence.
Na igreja da aldeia, os portugueses Pedro Ferreira e Rita João coordenaram o grupo de artesãs da palha. Na borracharia, do outro lado da rua, a designer de jóias piauiense Kalina Rameiro trabalhou com os artesãos da borracha. O resultado foi uma colecção de cerca de 30 peças destinadas ao mercado brasileiro da decoração. Esta não é, porém, uma colecção “assinada” por designers de fora e produzida por artesãos locais. Aqui, os designers foram os catalisadores de um processo de manufactura já encetado pelos artesãos: definiram com eles processos de construção, técnicas de manuseio e optimizaram a produção, mas também ampliaram a sua imaginação ao criar objectos utilitários e decorativos com novas dimensões, formas e acabamentos. Por fim, trabalharam a “artesania”, neologismo do ceramista brasileiro Gilberto Paim — “um grau alto de atenção ao detalhe e de cuidado na execução, oriundos de um senso peculiar de orgulho no trabalho, do prazer em fazer bem feito”. Objectivo: incutir nos artesãos a ambição de atingir novos mercados através da valorização do seu trabalho.
Próxima etapa: transformar o mercado, na segunda fase do AGT — apresentar a colecção em Abril durante o Salão Internacional do Móvel de Milão. Tendo como parceiro o gigante editorial Grupo Abril, Marcelo Rosenbaum quer que a mostra do AGT no mais importante evento de design do mundo acelere o reconhecimento e valorização do artesanato brasileiro no seu próprio país.
Outros nomes importantes do design brasileiro, como a curadora Adélia Borges(que acaba de publicar Design + Artesanato – o Caminho Brasileiro), têm defendido uma maior união entre o design e o artesanato como forma de projectar bens, mas também serviços e sistemas mais adequados aos recursos naturais, às realidades humanas e ao património cultural do seu país.
Sendo o Brasil o 5º maior mercado interno do mundo, esta é a altura certa para mudar as expectativas que os brasileiros têm dos designers e produtores dos seus bens de consumo, sejam eles pequenas comunidades de artesãos ou grandes marcas e indústrias.
Ao “colocar uma lente de aumento sobre Várzea Queimada”, Rosenbaum quer mostrar o talento e o potencial para produzir e criar riqueza dos brasileiros, mesmo em povoações remotas. Quer usar o design como ferramenta de negócio e assume: “A gente não vai fazer milagre.” Mas acredita que o impacto deste AGT será sentido em Várzea Queimada ao longo dos próximos 30 anos.
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Este é um de dois artigos que escrevi sobre o projecto A Gente Transforma e que foi publicado no dia 26 de Fevereiro na Pública. Pode também ser lido no site do AGT.
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