Quem o convida para desenhar um cartaz sabe que está a pedir “um João Machado”. Ele já fez mais de 400. O mapa do design português que temos percorrido nestas páginas passa agora pelo designer gráfico português mais conhecido no estrangeiro, aquele que foi um dos primeiros a sair do anonimato.
É o designer gráfico português mais conhecido no estrangeiro. Em muitos dos encontros desta disciplina a nível global é – ainda – o único nome associado a Portugal quando se fala de Design de Comunicação. No entanto, não é em Portugal nem particularmente famoso entre designers (especialmente entre estudantes ou gerações mais novas) nem entre o resto dos seus habitantes. É verdade que um dos designers de comunicação mais famosos do mundo (foi o autor da nova identidade da Casa da Música), Stefan Sagmeister, desmontou a questão da fama ao afirmar que “um designer famoso é o mesmo que um electricista famoso”. Ou seja, raramente estes profissionais são (re)conhecidos pela sociedade – apesar do seu trabalho ser visto todos os dias por todos nós – vindo a aclamação exclusivamente dos “companheiros de classe”. Por isso, pelo menos a esse nível, João Machado está, quando completa 65 anos de vida e 30 de carreira, ao nível “dos grandes”.
Teve o seu trabalho exposto em exposições colectivas e individuais por todo o mundo – foi o único português a expor na DDD Gallery, a galeria de Osaka que, com a galeria-irmã GGG de Tóquio, é um “templo maior” do design gráfico – e tem obra publicada num excepcional número de revistas. Recebeu ainda várias distinções e prémios, dos quais se destaca o que é provavelmente o “Nobel do design gráfico”: em 1999, recebeu o Prémio de Excelência da Icograda (Conselho Internacional das Associações de Design Gráfico), o órgão principal desta disciplina a nível mundial.
Com formação em Escultura na Escola Superior de Belas-Artes do Porto, pouco tempo depois de ter terminado o curso João Machado apercebeu-se das possibilidades das duas dimensões das “artes gráficas”, em detrimento das três dimensões do trabalho escultórico. De 1976 a 1983 leccionou na novíssima licenciatura em Design Gráfico na escola onde se formou, período que para ele foi tão curto quanto suficiente. Apesar de ter trabalhado anteriormente no projecto Tele-Escola, nunca sentiu vocação para ser professor, tendo abandonado cedo a vida académica. Abraçou então uma carreira profissional como designer gráfico, e especialmente como designer de cartazes.
Da tesoura ao rato
A partir do seu trabalho para as crianças da Tele-Escola, começou a trabalhar em ilustração infantil. Foi nestas primeiras criações que deu início à exploração de técnicas como o pastel seco, e mais tarde o aerógrafo, sobre máscaras de recortes de papel, começando também a “desenhar com tesoura em vez de lápis”. Assume ter sido, ao escolher essa forma de “desenho”, fortemente influenciado pelo cartaz polaco dos anos 60 e 70, onde a arte do cartaz “era uma questão de resistência, mas também de sobrevivência” face ao regime comunista. Desta tradição destaca o “mestre” Henryk Tomaszewski, que, pela maneira como usava formas planas de cor nos cartazes, influenciou Machado a construir, através do recorte e colagem de papéis coloridos disponíveis no mercado, composições expressivas que passaram a ser uma das componentes da sua idiossincrática expressão plástica. Formas poligonais simples – evocando elementos retirados da natureza, da indústria ou do próprio homem, levados à abstracção ao ponto de serem irreconhecíveis – vão ser, juntamente com o seu uso da cor e das transições e gradientes cromáticos, a sua imagem de marca, o seu “estilo” com o qual é identificado ainda hoje.
O “estilo” que João Machado tem consistentemente cultivado não sofreu alterações nem com a transição das artes gráficas analógicas para o design digital. O seu processo de concepção é o mesmo desde os anos 70, dos tempos do desenho com tesoura, até hoje, o tempo do “desenho com o rato”. Das primeiras anotações de ideias em cadernos que ainda guarda seguiam-se dantes as maquetas e estudos de cor em papéis coloridos. Agora esboça directamente no ecrã – usando “software” como o Freehand ou o Photoshop – e quando necessário imprime testes na impressora de grandes formatos do seu “atelier”. A grande diferença entre as duas “eras” dá-se na execução da versão final a imprimir: entre a minuciosa e demorada arte final a traço de caneta Rotring e códigos de cor e o actual ficheiro de impressão final exportado em segundos, ganhou-se o tempo que dantes se gastava na gráfica, “à boca da máquina”, a realizar testes de cor, gradientes cromáticos por processos mecânicos, afinações de cores directas e outros malabarismos de que hoje só o romantismo de outrora se compadece.
As artes do cartaz
Os cartazes pelos quais ganhou fama têm em eventos ou instituições culturais os seus principais temas, sujeitos e clientes. De semanas de jazz a exposições, do São João do Porto às Festas de Almada ou de Lamego, são várias as colaborações que tem mantido com os mais variados tipos de acontecimentos culturais ao longo dos anos. A sua colaboração com o Cinanima, Festival de Animação de Espinho, que tem decorrido ininterruptamente durante os últimos 30 anos, é, no entanto, o exemplo máximo da relação de cumplicidade entre designer e cliente ao longo do tempo: a história de um é traduzida pelo olhar do outro. Machado admite: “Ao fim deste tempo todo, eu até já lhes disse para darem lugar a gente nova, mas eles insistem que seja sempre eu a fazer o cartaz”.
Essa relação existe também para além da cultura: a afirmação da indústria portuguesa – e com especial destaque para a indústria do Norte do país — nos anos 80 e 90 está presente em cartazes seus para feiras industriais da Exponor, ou para empresas como os Papéis Carreira, que são, mais uma vez, fruto dessa relação de amizade, mas sobretudo de confiança entre quem encomenda e quem realiza. E talvez seja nesta relação que João Machado vê o passar do tempo, e não tanto nas mudanças tecnológicas do processo criativo: esse diálogo entre pares tem cada vez mais obstáculos e mais intermediários. Antes as coisas eram decididas entre quem decidia e quem fazia; hoje existe todo um exército de outros directores, de “marketeers”, e dos seus assistentes – que produzem muitas vezes apenas ruído, e retiram a clareza necessária para a veiculação de uma mensagem.
Estas mensagens que Machado veicula têm tido também outros temas, menos literais, como inspiração formal. Tem sido convidado a realizar cartazes e outras “reflexões gráficas” para eventos como a Cimeira do Rio de ‘92, a Expo ’98, ou comemorações como o Dia da Água, entre outras manifestações de carácter humanitário e ambiental para as quais contribui com icónicos exemplos do seu estilo. Sem um sentido de urgência ou de crítica expressa, os seus cartazes, mesmo quando dedicados a assuntos como o futuro do planeta, convidam a uma contemplação, lírica, lúdica, mas passiva. Usa ilustração, recusa a fotografia e deixa declaradamente a tipografia – tanto no valor do texto como dos tipos de letra – para segundo plano. “O mais importante é a imagem”, defende. Este é o elemento fulcral do seu trabalho em cartaz. E é destas imagens que falamos quando falamos dos mais de 400 cartazes que já assinou. Contemplativas ou formalistas, datadas ou intemporais, intrinsecamente portuguesas ou universais, a realidade é que elas dizem alguma coisa a muita gente.
Se o “escultor João Machado” – como é tratado – conquistou a fama de “artista do cartaz”, ganhou também o estatuto que lhe permite não praticar a “arte do compromisso”: quem o convida para desenhar um cartaz ou lhe encomenda um trabalho sabe que está a pedir “um João Machado”, e, como tal, as concessões feitas por um designer perante determinados objectivos (muitas vezes objectivos do gosto) do cliente não são nesta relação tidas em conta. Não o faz por um hipotético estatuto de “estrela”, já que a discrição é uma das suas qualidades; para ele, mais uma vez, a “prestação de um serviço” é preterida, mas a favor dessa relação de confiança, de respeito e entendimento entre profissionais.
Design “de autor” vs. “design anónimo”
No entanto, nem só de cartazes vive João Machado. Apesar de encará-los como “uma fruição absoluta”, o que lhe “dá verdadeiramente gozo”, no seu “atelier” na zona da Foz Velha, no Porto, onde trabalha com cinco colaboradores, são realizados muitos outros projectos. Desde intrincadas embalagens para clientes como a Ach Brito a selos para os CTT, passando por livros de Arquitectura e catálogos de exposições, é no desenho de identidades visuais, e nomeadamente de logótipos, que João Machado revela outra interessante dimensão do seu trabalho. Pois se o cartaz é uma forma de expressão de carácter autoral, nem todo o trabalho em design gráfico vem assinado. E um exemplo acabado disso é um logótipo: quando o vemos, nas suas mais inesperadas manifestações, não sabemos quem o fez. Mas João Machado “assinou” vários logótipos para instituições portuguesas, desde o Instituto Português de Museus à Casa-Museu da Juventude em Almada, passando pelo Museu do Douro, Restaurante Bull & Bear, ou pelos Transportes Intermodais do Porto. Símbolos e letras que fazem parte do património gráfico português, por muito efémeros que sejam: um exemplo disso é o logótipo que realizou para o Instituto Português do Audiovisual e Multimédia, o qual em breve se tornará obsoleto com a reestruturação de institutos do Estado e respectiva uniformização gráfica anunciada.
Machado pertence à geração de designers portugueses que conquistou pela primeira vez – dentro e fora do país – o reconhecimento não só do seu trabalho, mas também da importância da autoria no design, quer de comunicação, quer de produto. Dessa conquista faz parte também o sentimento de pertença a uma comunidade, a uma de várias “redes” globais de designers, que se vêm a estabelecer ao longo dos anos através de exposições, conferências, congressos. Quando se diz que é o mais conhecido dos designers gráficos portugueses no estrangeiro, talvez seja por ter sido um dos primeiros que, quer pela afirmação da sua autoria, quer pela procura dessa pertença, tenha conquistado esse reconhecimento, e saído do anonimato. Outros têm vindo a entrar não só pelas portas que deixou abertas, mas por muitas outras, e continuarão a fazê-lo no futuro. E é com contentamento que ele vê isso acontecer.
Publicado originalmente no suplemento Ípsilon do jornal Público de 13.07.2007
Comments are closed.