Pode achar que não sabe o que é um filodendro, mas é quase certo que já se cruzou com uma das plantas do género. Uma exposição em Miami vai à procura dos designers, cientistas, arquitectos e artistas que as tornaram familiares e que juntaram o Novo ao Velho Mundo.
Porquê fazer de plantas domésticas comuns o assunto de uma exposição de museu? Esta pergunta/provocação é-nos feita no texto de entrada da exposição Philodendron, no museu Wolfsonian, Miami, pelo seu curador, Christian Larsen. Philodendron, em português filodendro, é o género botânico de várias plantas aráceas oriundas da América Central e do Sul. O subtítulo da exposição, Do Exótico Pan-Latino ao Americano Moderno, traduz o seu objectivo: mostrar como as espécies vegetais tropicais hoje presentes em todas as latitudes invadiram o nosso imaginário, revelando que além de botânicos e de horticultores, foram designers, arquitectos e artistas que as lá plantaram.
Quando Mitchell Wolfson Jr. ali nasceu, em 1939, numa família de empresários do cinema, Miami Beach já tinha a maior concentração de edifícios art déco do planeta. O estilo soa a França por remeter à Exposição de Artes Decorativas e Industriais Modernas organizada em Paris, em 1925, mas em Miami era conhecido nos anos 30 por Streamline Moderne, onde soava aos navios, comboios e automóveis que saíam das modernas linhas de montagem da América, cujas formas aerodinâmicas eram aplicadas a tudo o que mexia, e não mexia – de hotéis a apara-lápis. Wolfson, que cresceu rodeado destas formas, tem passado a vida a apreciar e a adquirir objectos de artes decorativas, design industrial e propaganda projectados entre 1850 e 1950.
Em 1986, este mecenas fundou o museu Wolfsonian e oito anos depois abriu-o no edifício actual, um armazém construído em 1927 no centro de South Beach. Em 1997 doou os seus mais de 180 mil artefactos à Florida International University, tornando pública uma das maiores colecções privadas de design do mundo. É graças ao Wolfsonian, mais do que aos seus hotéis art déco, que Miami Beach se tornou um destino obrigatório para admiradores e investigadores de design, mas também das culturas visual e material da modernidade.
A vida social das plantas
Depois de ter sido curador assistente no MoMA (Museum of Modern Art de Nova Iorque) e antes de chegar ao Wolfsonian, Christian Larsen integrou o programa de doutoramento em artes decorativas, história do design e cultura material no Bard Graduate Center em Nova Iorque. Num dos capítulos da sua tese, que está prestes a concluir e tem o título Aquarela do Brasil: Fluxos transnacionais do design e da cultura material brasileiros, este curador-historiador de pai americano e mãe brasileira aplicou o conceito antropológico da “vida social das coisas” às plantas tropicais, investigando a história da sua chegada à América do Norte e da sua comercialização.
A exposição aborda primeiro os relatos e recolhas de plantas realizados nas primeiras viagens de descoberta conduzidas por europeus na América Central e do Sul. Enviados por monarcas como Filipe II de Espanha, Luís XIV de França ou Francisco I da Áustria, cientistas e artistas foram classificando estas espécies e representando as suas formas e paisagens, demostrando o poderio dos seus soberanos, mas também a transformação da natureza desconhecida, assustadora e espectacular do Novo Mundo em algo conquistável, compreensível e aplicável.
Exemplo disso é o célebre livro Voyage pittoresque et historique au Brésil…que reúne um total de 151 gravuras realizadas entre 1816 e 1831 pelo pintor francês Jean-Baptiste Debret nos 15 anos em que viveu no Brasil, a mando de D. João VI. Duas dessas gravuras reflectem a tensão entre representação fantasiosa e aplicação prática: uma mostra “selvagens civilizados” combatendo uma tribo de “botocoudos”, nome genérico que os colonizadores portugueses davam a vários grupos de indígenas, numa densa selva de troncos, trepadeiras e jibóias; a outra mostra vistas da floresta explorada, dominada, destacando quatro espécies de plantas que, de acordo com a legenda do próprio Debret, “servem para fazer laços”.
Uma dessas visões do “eu” e do “outro” é o desarmante retrato oficial do Imperador do Brasil D. Pedro II, fotografado em 1883 e sentado, não numa sala de trono europeia, mas num estúdio rodeado de plantas dos seus territórios. Quando empregues por artistas das novas nações americanas, como nas colunas de trepadeiras geométricas desenhadas por Manuel Amábilis Dominguez para o Pavilhão do México da Exposição Iberoamericana de Sevilha de 1929 ou nos painéis em mosaicos de plantas e cidadãos indígenas desenhados por Paulo Werneck em 1943 para o Ministério das Finanças do Brasil, estas plantas tornam-se também símbolos de uma confiante autodeterminação. Ou de uma linguagem partilhada, como são os monumentais painéis de azulejos com folhas e ramagens desenhados em azul e branco pelo artista brasileiro Francisco Brennand para a sede da Bacardi Imports em Miami, projectada em 1963 pelo arquitecto cubano Enrique Gutiérrez.
Da selva à sala de estar
Foram exploradores botânicos como David Fairchild, que no início do século XX trouxe para os EUA mais de 200 mil espécies exóticas e fundou em Miami dois importantes jardins botânicos tropicais, que deram a conhecer estas plantas aos americanos. E foram horticultores-empresários como Mulford B. Foster que permitiram comprar dezenas de espécies tropicais, como as que este arquitecto e botânico trouxe do Brasil em 1939-40 e começou a hibridar e a distribuir a partir do Tropical Arts Nursery em Orlando. Mas foram os editores e editoras de revistas de decoração americanas, que então se viravam para a América Latina como fonte de inspiração, que trataram de estimular o mercado.
Esta viragem fazia parte da política “bons amigos”, desenvolvida pelos EUA a partir de 1933 para manter os regimes latino-americanos na sua esfera de influência através do entretenimento e das artes aplicadas. A exposição de Miami inclui excertos de filmes que apresentaram ao público personagens como Carmen Miranda ou Zé Carioca, além de páginas e capas de revistas e livros em que cenários e interiores domésticos desenhados ou construídos de luxuriante vegetação tropical evocam ideias de uma natureza exótica, sensual, dócil e submissa. Aproveitando este despertar dos americanos para os seus vizinhos do sul, várias empresas começam a aplicar motivos e temas tropicais a móveis, tecidos e papéis de parede, como aquele que cobre uma das paredes da galeria com exuberantes folhagens, lançado em 1947 na colecção da influente designer de interiores Dorothy Draper chamada… Brazilliance.
Um conjunto de fotografias de Julius Shulman, o mais hábil criador de imagens da arquitectura moderna americana, mostra como na América e Europa do pós-guerra este horror vacui ornamental é progressivamente substituído pelo rigor despojado do estilo internacional. Todas as fotografias de casas projectadas nos anos 1940 e 50 para a elite da Califórnia por Richard Neutra, Rodney Walker ou Charles e Ray Eames contêm pelo menos um Imbé (Philodendron imbe) ou uma Banana-de-Macaco (Philodendron bipinnatifidum). Nestes espaços de estrutura ousada e ampla afluência, estas plantas fundem interior com exterior, mobília com escultura, natureza com arquitectura, exotismo com familiaridade, objecto com imagem. Disseminadas em inúmeras revistas de arquitectura, design de interiores e design industrial, estas imagens despertaram os sonhos de gerações que, não podendo ter uma casa de arquitecto, podiam e ainda podem ao menos ter uma planta moderna.
Foi talvez com essa intenção que em 1955 Dieter Rams, o mais funcionalista dos designers alemães, incluiu uma Costela de Adão (Monstera deliciosa) num primeiro esboço da sua estante universal, acrescentando um detalhe de cor e natureza a um espaço de planos brancos e linhas ortogonais. Na mesma altura, o artista e arquitecto paisagista brasileiro Roberto Burle-Marx revoluciona a forma de pensar jardins e espaços públicos modernos ao explorar nos seus projectos as qualidades esculturais e cromáticas de espécies brasileiras, algumas descobertas pelo próprio, como o Philodendron burle-marxii – um dos exemplares vivos expostos nas galerias do Wolfsonian.
A secção contemporânea da exposição revela o maior contraste entre artes plásticas e artes aplicadas. Nas colecções de designers de moda como o turco Erdem Moralioglu e o brasileiro Oskar Metsavaht, ou em produtos como a cadeira Deliciosa do brasileiro Fernando Jaeger, a estrutura e a forma dos filodendros são usadas de uma maneira mais despreocupada, mas não menos eficaz. Contudo, nas pinturas, fotografias, esculturas e instalações de artistas do Novo Mundo – como a americana Michele Oka Doner, o haitiano Edouard Duval-Carrié e a brasileira Claudia Jaguaribe – as representações e referências complexas a estas espécies vegetais mostram que o questionamento sobre as identidades transplantadas e realidades híbridas dos sujeitos e dos povos americanos está longe de estar concluído.
Tal como os filodendros, também Miami, que hoje se afirma cada vez mais como capital cultural da América Latina – é assim devido à ampla presença de artistas e galeristas das várias nacionalidades da América Latina na cidade, mas também graças à sua representação nos acervos de múltiplos museus e mesmo na Art Basel Miami Beach, que é desde 2002 a maior feira de arte dos EUA – pode ser descrita como exótica, estrangeira, moderna e universal. É, portanto, o local ideal para este questionamento. Todavia, Christian Larsen não quer que a sua provocação fique por aqui: “Eu esperava que a exposição pudesse viajar para o Brasil, talvez para um outro país sul-americano, e que em cada instância um curador local pudesse desenvolver a história da planta e da sua iconografia nesse lugar. No espírito das percepções interculturais, seria muito gratificante ver como um curador brasileiro, peruano ou mexicano, por exemplo, desenvolveria o projecto.”
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Quando soube que o Christian Larsen estava a trabalhar no Wolfsonian numa exposição sobre a influência das plantas tropicais na arquitectura e design de interiores modernos quis logo marcar o meu bilhete para Miami. Não consegui ir na inauguração em Outubro de 2015, mas fui mais tarde e escrevi este artigo para o Público.
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