O português Frederico Duarte analisa os rumos que o design brasileiro pode seguir dentro do contexto internacional
O Brasil é hoje mais do que uma nação tropical de praia, samba e futebol. É uma superpotência do século 21. Está por isso na hora de o mundo, ou pelo menos o mundo do design, prestar a devida atenção ao design brasileiro. Mas também está na hora de os designers brasileiros tratarem o seu povo, um de seus principais valores, com o respeito que ele merece.
Junto com a Índia, a China, a Rússia e a África do Sul, o Brasil está hoje à frente de uma nova ordem mundial. Esses países emergentes estão a desafiar o seu estatuto de ex-colônias, destinos exóticos ou nações periféricas, dando forma a um mundo infinitamente mais complexo, interdependente e multipolar. Serão também esses países que criarão os mais importantes desafios para o futuro do design, ao reconhecerem o potencial dos seus povos na criação e aplicação de materiais, tecnologias, produtos e serviços.
Heterogêneo, miscigenado e multicultural, o povo brasileiro constitui hoje não só um dos mais dinâmicos mercados internos, mas também uma das sociedades mais fascinantes dos nossos tempos. Apesar de ainda ser uma das mais desiguais do mundo, a impressionante mobilidade social dos últimos anos tem possibilitado à maioria da população desfrutar de momentos de grande otimismo e elevada autoestima.
Os mais de 90 milhões de ávidos consumidores e cidadãos ativos da grande classe C estão a transformar radicalmente o consumo, a cultura, os media e mesmo o exercício da cidadania no seu país. Essas mudanças fazem com que o Brasil esteja a viver o seu momento histórico mais fascinante. E o mundo está atento a ele.
O mesmo se pode dizer do design brasileiro. Se ao longo do século 20 o design foi tido como uma atividade desempenhada por uma elite para uma elite (nada que seja exclusivo do Brasil), no século 21 as coisas estão diferentes. Progressivas mudanças no ensino, na prática, na cobertura midiática ou mesmo no reconhecimento institucional da profissão têm contribuído para uma alteração significativa do impacto econômico e da função social do design no Brasil.
Projetar para o Brasil de hoje é um dos maiores desafios para qualquer designer. Mas ser designer no Brasil, agora, significa também trabalhar com as possibilidades e limitações de um país cuja sociedade está evoluindo mais rápido do que a sua indústria. É que se o apetite para comprar dos brasileiros é enorme, o seu potencial para fazer ainda deixa muito a desejar. Um mercado de trabalho altamente inflexível e pouco qualificado, um sistema fiscal e tarifário desconcertante, uma infraestrutura deficitária e uma economia informal generalizada são apenas alguns dos calcanhares de aquiles da indústria do país.
Muitos dos industriais brasileiros têm também sido notoriamente avessos ao risco e ao investimento em tecnologia, design e criação de marcas, baseando a sua vantagem comercial num mercado ainda demasiado fechado às importações e numa mão de obra barata e de baixa qualificação. Isso não vai durar para sempre: o custo da mão de obra brasileira é mais elevado do que o da indiana, da chinesa ou da vietnamita. Além disso, a economia será cada vez mais permeável a produtos feitos noutras partes do globo.
Havaianas e Campanas
Qual é então o lugar dos designers brasileiros no Brasil e no mundo? Como eles podem hoje competir em âmbito global? Essas foram apenas duas questões que apresentei a mim mesmo quando, há dois anos, comecei a minha pesquisa sobre design no Brasil, para o mestrado em crítica de design na Escola de Artes Visuais de Nova York.
Rapidamente me apercebi quão pouco do design de produto e de mobiliário contemporâneo brasileiro é conhecido fora do país, para além dos seus maiores ícones: as Havaianas e os Campanas. Elas são um exemplo do design usado como soft power, objetos simples que através de uma brilhante campanha de marketing e relações públicas têm vindo, desde os anos 1990, a convidar o mundo a partilhar do melhor que o “estilo de vida brasileiro” tem para oferecer. Eles são, ainda, os únicos cidadãos brasileiros do “mundo do design”.
Nunca me interessou identificar o que há de brasileiro (seja lá o que isso queira dizer) no design de produto e mobiliário feito e pensado no Brasil, mas sim encontrar aspectos específicos na sociedade brasileira que condicionam, ou potenciam, o trabalho dos seus designers. Interessa-me também menos a especificidade na forma do que a especificidade no contexto e no processo.
Um dos aspectos mais importantes do atual contexto do design brasileiro é não tanto as pessoas que projetam, mas as que fazem o que chamamos produtos de consumo. Por outras palavras, os recursos humanos que estão por trás do design “made in Brazil”. Muitos dos projetos com maior reconhecimento internacional colocam as pessoas, e não os produtos, em primeiro plano. Falam das suas origens, do seu entorno, do seu contexto. E como todo mundo gosta de uma boa história, há sempre alguém disposto a ouvir uma boa história do país onde o futuro parece finalmente ter chegado.
Algumas dessas histórias são contadas por designers envolvidos em projetos de design social, iniciativas em que eles são chamados a intervir junto de comunidades, urbanas ou rurais, para prestar serviços de consultoria mercadológica ou aplicar a metodologia projetual a processos de manufatura artesanal. Em geral, o seu papel nesses processos visa a melhoria da produção, distribuição e comercialização dos manufaturados, bem como o acréscimo de renda dos seus fabricantes.
Campo minado
Apesar do crescente reconhecimento institucional e midiático desses meritórios projetos, trata-se de um campo relativamente delicado, para não dizer minado, do design atual – e não só no Brasil. A maioria dessas iniciativas é menos operações comerciais e mais ações assistencialistas, sendo em geral economicamente viáveis graças a apoios federais, estatais ou corporativo-filantrópicos – não raramente em troca de benefícios ou deduções fiscais.
Bons exemplos desses projetos abundam, e chegam-nos de todo o país: desde a atuação pioneira do mineiro Renato Imbroisi com artesãos pelo Brasil afora (e também em Moçambique e São Tomé e Príncipe) aos sucessivos trabalhos com comunidades do (majoritariamente gaúcho) Laboratório Piracema de Design e do pernambucano O Imaginário, passando pelos materiais desenvolvidos pelos cariocas do Fibra Design ou os produtos para a ONG paranaense Solidarium criados pelos paulistanos do Nódesign. A vasta maioria desses projetos é pensada para consumo interno, tendo um campo de ação e mesmo de promoção geralmente limitado às fronteiras e aos media nacionais.
Apesar das suas fragilidades, esses projetos encontram no Brasil, ou melhor, no povo brasileiro, uma oportunidade social para a atividade do design. Mas outros há que são, digamos, socialmente oportunistas. Por outras palavras, se os projetos de que falei até aqui destacam o fator humano do design brasileiro, os que vou descrever agora encontram no que chamo fator favela o seu diferencial internacional.
O charme da Rocinha
O primeiro é um produto criado pelos irmãos Campana para a marca francesa Lacoste. Na verdade, o resultado dessa colaboração deu origem a uma coleção de quatro modelos da clássica polo da marca, cada um exibindo quantidades diferentes do seu célebre logotipo (quantos mais crocodilos, mais cara a camisa); a sua pièce de résistance foi não menos que uma peça de roupa feita inteiramente de 3 mil crocodilos verdes. Simbolicamente, essa camisa é 100% pura marca; materialmente, é não mais do que outra aplicação do já pouco surpreendente método Campana de design: fazer de um amontoado de partes banais um todo extraordinário.
O aspecto mais interessante dessas polos não é que tenham sido feitas apenas 12, ou que cada uma tenha estado à venda por 7,5 mil dólares (5 mil para a versão feminina). É que a Lacoste não escolheu concentrar-se na natureza superlimitada dessas manifestações altamente colecionáveis da sua marca, nem na forma prodigiosa como os designers estrela que contratou fizeram, a partir de uma autêntica filigrana de algodão, um objeto de luxo e de culto. A Lacoste preferiu falar-nos sobre quem os fabricou.
À época do lançamento, a célebre loja novaiorquina “de design”Moss dedicou grande parte do seu comunicado de imprensa sobre o projeto à Coopa-Roca, uma ONG sediada na favela da Rocinha. Tal como outros comunicados de imprensa sobre produtos fabricados na Coopa-Roca e projetados por designers conhecidos internacionalmente, este transforma os Recursos Humanos da cooperativa em Relações Públicas para a marca.
Não há nada de errado ou condenável nisso. Mas talvez alguém já tenha ouvido falar do termo petites mains, usado para descrever os batalhões de costureiras e outros artesãos empregados há décadas pelas casas de alta costura para executar, primorosamente, as criações exclusivas e luxuosas dos seus designers. Mas se essas marcas nunca sentiram a necessidade de falar dessas pessoas, de contar a sua história, o que faz as mulheres da Coopa-Roca falarem mais alto do que a marca de luxo para quem trabalham ou do que os designers famosos que lhes deram trabalho?
Salvem o crocodilo
Essas polos são uma evidência de como os recursos humanos brasileiros estão a ser explorados pelo “mundo do design” – dentro e fora do seu país. A promoção do trabalho digno e a capacitação das mulheres brasileiras são sem dúvida causas nobres. Mas deverão a empatia ou mesmo a caridade ser invocadas para vender excêntricas peças de roupa como essas? E será que quem as compra se pergunta quanto, ou quão pouco, dos milhares de dólares que pagou vão parar às mãos das mulheres da Rocinha? Qual é o valor real do seu trabalho?
E se essas polos fossem feitas por mulheres (ou homens) a troco de um salário digno, numa fábrica com boas condições de trabalho, situada num bairro pacato duma pequena cidade brasileira do interior? Será que teriam o mesmo cachê? Ou é preciso serem “made in Rocinha”, a favela com a melhor vista do mundo, para alguém as querer comprar?
Quando parecia que essa relação produto-marca-designer-fabricante já era complexa o suficiente, a história complica-se. É que a Lacoste é a primeira marca a trabalhar com a Save Your Logo, uma organização protetora de espécies animais ameaçadas que colabora com grifes cujos logotipos são animais para a defesa da biodiversidade. No caso da Lacoste, isso significa crocodilos, jacarés e outros répteis. Para comemorar essa iniciativa e a sua colaboração com os Campanas, a Lacoste fez duas festas exuberantes, em Paris e em São Paulo, bem como uma minidigressão na Ásia, além de uma campanha de imprensa.
Esse projeto dos Campanas pode ser visto como encarnação da sua mais famosa criação, a cadeira Favela, uma espécie de móvel-imagem destinada a explicar aos gringos, de forma rápida e vulgar, o Brasil fin de siècle. Aliás, esse tem sido um dos principais fatores do secesso internacional do trabalho de Fernando e Humberto Campana: a criação de uma ideia, de uma imagem particular do Brasil que se possa destacar num contexto global de design. Essa ideia começou a ganhar atenção internacional desde o início dos anos 1990, numa época em que os irmãos apresentaram alternativas a uma indústria mundial de mobiliário inundada por objetos insensíveis às necessidades e desejos – aos contextos específicos – de um mundo mais interligado comercial e simbolicamente.A cadeira Favela foi uma dessas alternativas. Ou melhor, a sua primeira versão, construída em 1991 pelos próprios irmãos como homenagem à criatividade dos indigentes das ruas de São Paulo. A marca italiana Edra demorou mais de dez anos para descobrir como produzir o projeto de forma seriada; acabou subcontratando a empresa de móveis Habitart, fundada por colonos alemães no Rio Grande do Sul, onde ainda hoje cada cadeira é feita a partir de centenas de pedaços de madeira, cuidadosamente montados com pouco espaço para a improvisação, antes de ser vendida por perto de 5 mil dólares. Apesar de muito menos improvisada ou “alternativa” que a sua versão original, a cadeira tornou-se um ícone do design brasileiro. Quem diria: o fator favela vende mesmo.
Vende tanto, que outros designers têm aplicado a mesma receita, em busca de reconhecimento e sucesso internacional. Um exemplo disso é o projeto Próteses e Enxertos, do Studio MK27. A equipe de arquitetos liderada por Marcio Kogan criou 16 peças de mobiliário, cada uma valendo entre 2 mil e 15 mil dólares, a partir de estruturas “temporárias” feitas por operários da construção civil em canteiros de obra. A esses móveis toscos os arquitetos acrescentaram elementos preciosos, como fibra de carbono, folha de ouro ou almofadas de veludo, prolongando (dizem eles) a vida funcional destes objetos e celebrando uma putativa tradição de design vernacular.
No catálogo da coleção pode ler-se: “Os pobres são arquitetos porque não têm as ideias extravagantes dos ricos a respeito da casa”. Uma estupenda, e aqui irônica, citação de Lina Bo Bardi – imagino o que pensaria ela desse projeto, pois aqui os pobres ficam pobres e os ricos enriquecem: como muitas dessas peças são elaboradas de forma anônima, os trabalhadores que as criaram não ganham nada com a sua venda. Não deveria o design brasileiro refletir, ou mesmo contribuir, para a mobilidade social do seu povo, em vez de postular um ofensivo statu quo?
Brasilidade perversa
Outro exemplo do fator favela vem de uma das últimas criações do prolífico designer Brunno Jahara, que é também um exímio promotor da sua obra em blogs e revistas de design internacionais: a coleção Neorustica, composta por mesas, aparadores e bancos feitos de tiras de madeira de demolição (notavelmente semelhantes a peças de mobiliário do holandês Piet Hein Eek). No seu comunicado de imprensa, difundido por toda a internet, lê-se que ele “quer destacar as condições de vida das pessoas que se deslocam do campo para as grandes cidades em busca de uma vida melhor (ou seja, casas improvisadas feitas de sucata)”. Não admira que Jahara tenha dado a cada peça o nome de… uma favela do Rio de Janeiro. Favela chic, portanto.
Inspirados no engenho que advém da necessidade e da escassez dos pobres do Brasil (a chamada gambiarra, uma característica que os brasileiros teimam em reclamar como só sua), esses três projetos poderiam ao menos ser comentários à sociedade brasileira (pedir a uma cadeira ou uma camisa polo para serem atos de design crítico ou político talvez seja demais). Mas nem isso. Nem sequer pretendem, ao contrário dos projetos que mencionei antes, melhorar as condições de vida das pessoas em que supostamente se inspiram. Apenas as usam como símbolos de uma perversa – exótica, periférica, terceiromundista – brasilidade contemporânea. É aqui que oportunidade criada para o design pelo povo brasileiro vira oportunismo de design.
Será fazer móveis para os ricos do mundo inspirados nos pobres do Brasil o desígnio internacional dos designers brasileiros? Espero que não. Aliás, eu espero que quando o Brasil conseguir finalmente erradicar a pobreza, e a sua sociedade, já miscigenada e multicultural, se tornar mais justa e igualitária, essas manifestações do fator favela no design de produto e mobiliário sejam vistas como piadas de mau gosto. Está na hora de deixarmos de dar forma a estereótipos e histórias de um Brasil passado e exigirmos uma nova narrativa para o design brasileiro do futuro.
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Este ensaio de 6 páginas foi publicado no número 376 da revista Projeto Design em Junho de 2011. Muito obrigado à Evelise Grunow, editora de design da revista, pelo convite para integrar este longo artigo na revista, que surgiu no seguimento de uma longa conversa em Lisboa. Este texto é ainda uma adaptação da palestra que eu dei em Janeiro de 2011 na Royal College of Art, em Londres, e foi mais tarde adaptado para uma palestra na Fundação Calouste Gulbenkian, integrado no Observatório da África e América Latina do Programa Próximo Futuro.
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