Viagem ao interior dos Ace, a rede que está a revolucionar a cultura hoteleira nos Estados Unidos. Com paragens em Seattle, Portland, Palm Springs e Nova Iorque
Em 1999, três amigos abriram um hotel em Seattle para os seus conhecidos. Mais de dez anos depois, os Ace Hotels são muito mais do que apenas uma inovadora cadeia de hotéis: são uma marca poderosa, uma plataforma para colaboração e, sobretudo, uma forma singular de estar na vida.
Os amigos Alex Calderwood, Wade Weigel e Doug Herrick, figuras activas na renascença cultural do noroeste americano dos anos 90, sabiam exactamente o que queriam de um hotel, percebendo também que a sua ideia não se encaixava em qualquer modelo existente. Alex e Wade já tinham experiência em marketing, produção de eventos e promoção nocturna. Já tinham também criado a cadeia de barbeiros Rudy’s, que alia cortes de cabelo acessíveis a estilo, arte e música – cada uma das mais de 15 barbearias em toda a costa oeste, além de cortar cabelos, vende bilhetes para concertos e festas.
Os três procuravam criar um lugar onde as pessoas com quem conviviam e trabalhavam – artistas, designers, editores de revistas e músicos – quisessem, e pudessem ficar sem ter de gastar muito dinheiro – algo que raramente abunda entre os chamados «profissionais criativos». Daí terem criado primeiro o conceito Ace: o nome vem do termo inglês para Ás, a carta simultaneamente mais alta e mais baixa do baralho: para eles, cada hotel deve oferecer tanto o conforto barato como o luxo sem preço.
A seguir, aplicaram esse conceito a residenciais abandonadas ou em decadência, situadas em zonas em transição, usando muitas das estruturas, funcionalidades e mesmo detalhes arquitectónicos dos edifícios originais. Através da criatividade, da colaboração com outros profissionais e marcas e da criação de um sentido de comunidade (assim como um admirável sentido de marketing e relações públicas) têm vindo a tornar edifícios decrépitos de zonas duvidosas em âncoras de sucesso e reabilitação urbana.
E o que oferecem os Ace aos conhecidos dos seus três fundadores? Nenhum dos caprichos que outras cadeias «de luxo» se gabam, como cardápios de almofadas, TV Pay-per-view, musiquinha Ibiza lounge ou bares de sushi. Em alternativa, oferecem roupões concebidos por designers emergentes e produzidos nos EUA, Wi-Fi rápida e gratuita em todos os edifícios (bem como os seus apêndices e satélites), promovem bandas e DJ’s em começo de carreira e servem comida orgânica, criativa e local.
Ao fazê-lo, têm vindo a promover uma cultura hoteleira que tanto responde às idiossincrasias e exigências de cada hóspede (e se há «classe» difícil de agradar, é a criativa) como cria a sua própria moda, o seu próprio hype, com uma grande astúcia, agilidade e pragmatismo. Entre Junho e Outubro deste ano quis descobrir como é viver na “Ace America”, visitando todos os hotéis do grupo em quatro cidades americanas. No fim do périplo fica a pergunta: onde será o próximo destino do império Ace?
Seattle – Onde tudo começou
Após duas noites de viagem, chego à estação de comboio de Seattle pela manhã. De lá até Belltown são uns bons 25 minutos a pé – na prática, o suficiente para atravessar toda a baixa da cidade. O Ace fica num pequeno prédio de esquina deste bairro semi-pós-industrial, por cima do Cyclops Café, do Panther Bar e de um Rudy’s. Entro e subo a longa e íngreme escada até à recepção. Cheguei ao meu primeiro Ace.
O primogénito hotel do grupo tem sabido envelhecer. Como os outros que o seguiram, é um misto de pensão e hotel de luxo, mas um luxo simples, que de acordo com os seus fundadores significa oferecer «tudo o que precisas e nada do que não precisas». E aqui oferecem-se dois tipos de quartos: standard (duplos sem casa de banho) e deluxe. Dormi num dos últimos, o qual tinha o seu próprio pátio interior e, como cabeceira da cama, uma parede de vidro com o duche por trás. No piso inferior, o pequeno almoço incluído na reserva (uma excepção entre os Ace) é servido, durante toda a manhã, na cozinha e lavandaria comunais.
Em todos os 28 quartos e áreas comuns do hotel, o uso inteligente de espaço alia-se a tons neutros e texturas simples para criar um todo que é acolhedor sem ser exclusivo e confortável sem ser ostensivo. E depois há todos aqueles detalhes memoráveis que qualquer Ace tem, como os cobertores de lã do exército, as caixas de fósforos, os lavatórios industriais, os gel de banho e shampoo próprios (ou melhor, da Rudy’s) os papéis de parede com paisagens do nordeste americano, obras de artistas e ilustradores, ou mesmo o armário italiano do século XVIII da recepção.
Portland – Elogio alternativo
Ao fazer o check-in, pergunto ao rapaz da recepção onde devo ir nas três noites que vou ficar em Portland. Ele diz-me os bares onde posso ver bandas indie, algumas de amigos dele (tive preguiça e não fui), assim como o seu food-cart favorito (The Whole Bowl, bem bom). Como noutros Ace, o serviço não é nem snob nem «puxa-saco» e mesmo no que é um dos mais concorridos hotéis do grupo há sempre tempo para pedir sugestões e trocar uns dedos de conversa.
Estamos na cidade mais alternativa da América, uma espécie de último reduto da individualidade, da excentricidade e da vida em comunidade (seja ela de hippies ou hipsters) perdido no meio das florestas do Oregon. Aqui, as bicicletas, os bigodes, as tatuagens, os food-carts (a variante local de carrinhas/atrelados de comes e bebes), as micro-cervejeiras ou o café (nunca ninguém me tinha perguntado «o que procuras no teu café?»), mas também marcas como a Nike e a Patagonia ou a maior livraria independente do mundo, a Powell’s, são considerados património vivo da cidade.
O Ace de Portland fica a duas ruas da Powell’s, ocupando todo um quarteirão e o edifício de uma antiga residencial, o Clyde Hotel. Quando abriram as suas portas em 2007, os três sócios subiram a parada em termos do que um Ace pode ser: além dos 97 quartos, o hotel conta ainda com um Stumptown Coffee e o restaurante/bar Clyde Common, ambos com ligação ao amplo lobby do hotel. Se o primeiro é uma das dependências da cadeia independente de torrefactores que iniciou a revolução do café em Portland (e que os Ace mais tarde levaram para Nova Iorque), o segundo é um animado restaurante com mesas longas e um menu que muda diariamente. Na esquina há ainda o The Cleaners, um espaço para exposições e eventos.
Muitos dos quartos têm intervenções na parede em grande escala, feitas por artistas, designers e ilustradores. Há triplos baratos para grupos de amigos ou famílias (com casa de banho no corredor) e outros que incluem sofás, mesas-tronco e gira-discos (e duches com vista).
Foi neste Ace que os seus fundadores começaram as colaborações com outros agentes culturais e marcas, em coisas tão distintas como o design gráfico e de interiores, os roupões, as bicicletas para alugar, os produtos de casa de banho ou a programação dos espaços. A aposta foi sem dúvida ganha: este hotel não só fez com que a cadeia se tornasse num fenómeno, como também foi fundamental para o renascimento da área da cidade onde se encontra. À sua volta têm vindo a aparecer novos restaurantes e lojas, que se somam a históricas casas de discos em segunda mão, banda desenhada, assim como cinemas alternativos e outras coisas que esperamos deste tipo de bairros-antes-industriais-e-agora-criativos.
Palm Springs – Espírito de motel
Chego a Palm Springs já noite dentro, mas ainda consigo apanhar a cozinha do Kings Highway aberta. Com grandes janelas viradas para uma das estradas do centro de Palm Springs, o restaurante ocupa grande parte do edifício principal do Ace Hotel and Swim Club. O que foi outrora um velho Denny’s (a mais deprimente rede americana de fast-food) é hoje um ponto de encontro de nostalgia road trip e cozinha biológica e local. Experimento primeiro as pipocas com alho e ervas, e depois os cogumelos selvagens com polenta. Para beber, cerveja King’s Highway.
Mais tarde, passo pelo Amigo Room, o pequeno e escuro bar de cocktails, e pelo The Short Bus, o bar que abre para a piscina principal e cuja principal atracção são os snocones alcoólicos. Apesar de haver DJ convidado (parte da programação de bandas e DJs deste Ace, a mais intensa de todas) esta noite, talvez por ser domingo, a pista sob as palmeiras está vazia.
Mesmo numa noite calma como a de hoje, o Ace de Palm Springs é mais do que um motel dos anos sessenta bem actualizado para o século XXI. É um verdadeiro complexo hoteleiro de «boa onda». Atrás do edifício principal, vários blocos de dois andares dão para os pátios, para o spa orgânico e para as duas piscinas do complexo. Palmeiras, arbustos, trepadeiras e outras ervas autóctones dão um ar menos árido aos espaços comuns, sem ser os relvados verdes e insustentáveis do passado. Pintados de branco e com detalhes em metal, madeira e pano cru, os blocos de quartos contêm desde duplos simples e espaçosos, até luxuosas suites com pátio, lareira ou jardim. Todos partilham mobiliário vintage e um elemento decorativo: grandes lonas, penduradas do tecto ao chão, que dissolvem paredes em janelas, quarto e varanda, interior em exterior, noite e dia.
Às onze da manhã do dia seguinte já estão mais de 35ºC à beira da piscina. Não corre uma única aragem. À minha volta, outros jovens hóspedes espreguiçam o torpor do calor dentro e fora de água. Apesar de Palm Springs ser uma espécie de oásis modernista, estamos no meio do deserto californiano – e isso sente-se na pele. Já se pedem cervejas e cocktails. Há casais, pequenas famílias, cães e grupos de amigos (todos os Ace são pet- e gay-friendly). Devo ser a única pessoa não tatuada em todo o hotel, mas não isso não me intimida: numa das paredes desta piscina alguém escreveu num quadro de ardósia: «Smile, you’re in heaven». E eu sorrio.
Nova Iorque – Praça pública
São nove da manhã e, apesar de não ter passado a noite no hotel, estou a usar o lobby para trabalhar. Está cheio de gente. Imagino que muitas das pessoas à minha volta também não são hóspedes do Ace – apenas gostam, como eu, de aqui estar. A música é boa, os sofás são confortáveis e a net é de borla.
Este é um dos espaços públicos mais populares de hoje em Manhattan, sobretudo entre os profissionais da internet (tem mesmo vindo a ter uma reputação de paraíso entre os nerds). Durante o dia, bebe-se café Stumptown «importado» de Portland e servido ao balcão por empregados e empregadas tatuados e vestidos no mais irrepreensível hipster retro. Ao pequeno-almoço, almoço ou jantar come-se no Breslin Bar & Dining Room, o badalado restaurante de April Bloomfield e Ken Friedman, adeptos da culinária «do focinho à cauda» e famosos pelo seu The Spotted Pig, na West Village. Aqui comem-se, com estilo e gosto, todas as partes de vários animais – desde mioleira a língua, de rabo de boi a pés de porco. No The John Dory Oyster Bar, dos mesmos donos, há frutos do mar preparados das mais variadas e calóricas formas. A No.7 Sub Shop, parceira dos Ace com o restaurante No.7 de Brooklyn, dá directamente para a Broadway e serve sanduíches, biscoitos e refrigerantes (comparado com os outros parece aborrecido, mas não é). De volta ao lobby do hotel, à noite o volume da música sobe e a conversa de café e os laptop dão lugar aos cocktails e… a outro tipo de conversa. Às vezes a festa continua no Liberty Hall, o espaço de concertos e eventos no subsolo. O lobby dá ainda acesso às lojas Opening Ceremony e No.8a, parcerias entre os velhos amigos do Ace e novos amigos de Nova Iorque.
Por que é que ainda nem falei dos 258 quartos do hotel, que vão do mais espartano (um beliche, uma casa de banho) ao mais excêntrico (um loft de 65 metros quadrados com mesa de jantar, uma banheira de ferro fundido, guitarras e vista para o Empire State Building)? Ou do projecto de interiores, que juntou detalhes originais do decrépito hotel Breslin (uma das últimas pensões residenciais da cidade) a intervenções de street art, mobília em segunda mão e outros elementos do chic boémio americano, comuns aliás a outros Aces?
É que poucos hotéis se podem gabar de sozinhos – mas com a ajuda de amigos e conhecidos, claro – terem inventado um bairro. Este Ace fica na Rua 29 com a Broadway, numa estranha área da Midtown ocupada por lojas de revenda (tecidos, produtos electrónicos, perfumes falsos…) mas que, em menos de dois anos, se tornou no epicentro do que alguns chamam WhoDi (Wholesale District) mas muitos chamam de NoMad (North of Madison Square Park) – o novo bairro Ace de Nova Iorque.
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Este foi um dos artigos que mais gozo me deu escrever. Quando eu e a Laura Forde escrevemos para a revista UP, ficámos com o contacto do Ryan Bukstein, relações públicas dos Ace Hotels. Antes de começar a minha viagem pela América do Norte no Veraõ de 2010 propus ao Ryan um artigo sobre os Ace em troca de descontos nos outros três Ace para além do de Nova Iorque. Ele gostou da ideia e a Ana Pereira da Silva da Vida & Viagens também. O artigo só foi publicado em Janeiro de 2011 – para mim valeu a pena a espera.
As fotografias nesta página (não o artigo da Vida & Viagens) são minhas e só uma foi tirada num hotel Ace.
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