Miguel Vieira Baptista deixou a um canto da galeria Appleton Square uma dúzia de objectos por si projectados. Ao fazê-lo, prescindiu de plintos e legendas, mas também de teorias, metáforas, narrativas e de outros grandes gestos que uma galeria de arte lhe poderia exigir. Por isso é que “Drawer” é uma exemplar exposição de design.
Deixados entre o chão e duas paredes da galeria, estes doze objectos ocupam menos de um quarto da sala de exposição. O espaço por eles definido parece inicialmente apertado, ou comprimido, mas rapidamente ficamos com a impressão de não estar mais numa galeria de arte, mas num daqueles interiores domésticos simulados que só os fabricantes e comerciantes de mobiliário sabem criar. Não quer isso dizer que com esta exposição o estabelecimento comercial Appleton Square se tenha tornado numa loja de móveis, ou mesmo numa loja “de design.”
Num dos cantos do quarto de sala está um pequeno “perfil I” em betão cofrado. Não é um bruto elemento de construção deixado no chão da sala a fazer de mesa. Não é um readymade (os “perfis I” são em geral feitos em aço ou ferro fundido); as delicadas curvas em suspensão do tampo e pé, o fino acabamento, até mesmo os caracteres gravados no cimento com o seu nome e peso (47Kg) mostram que esta é uma bem pesada, mas também bem pensada peça de mobiliário. É, como os outros objectos em seu redor, o resultado de um refinado estudo formal. E resultado, como indica o título da exposição, do trabalho de um designer enquanto alguém que tem no desenho um meio para chegar a um fim.
“Terrier” está mais perto da mesa ao seu lado do que do candeeiro “Snoopy” de Achille e Pier Giacomo Castiglioni, a que o seu canino nome presta homenagem. À semelhança de projectos anteriores de Vieira Baptista (como o Livro Mesa de 2005), tanto um como outro têm na curva suspensa em cantilever a mesma origem formal e projectual. Com a tampa da caixa-mesa “Carril” em que está assente, “Terrier” partilha o material que lhes dá a forma. A chapa de aço lacado tem vindo a ser repetidamente usada por Vieira Baptista, ao longo da sua carreira, como uma espécie de folha de papel endurecida, a qual ele corta, recorta e dobra consoante as necessidades e intenções dos seus projectos.
Igualmente em chapa de aço, cada um dos espelhos de parede “Vezes” é composto por três planos perpendiculares entre si. São ao mesmo tempo representações do desenho geométrico como construção da tridimensionalidade (a partir dos eixos x, y e z) e multiplicadores do mundo real em reflexos que se cruzam e encontram em linhas de terra imaginárias. A julgar pelo seu obsessivo grau de detalhe e precisão construtiva, fazem parte de um mundo idealizado, que não se compadece com erros humanos, imperfeições de materiais, vicissitudes da manufactura ou exigências de mercado – não admira que a sua edição seja limitada a cinco exemplares e uma prova de artista.
“Comporta” é mais do que uma gaveta de parede – é um encontro de cinco planos de madeira suspensos no espaço. Nesta prateleira, nem sequer a natureza escapa ao domínio do mundo pelo projecto: ao longo da afiada aresta resultante da intersecção de dois destes planos, os veios da madeira foram feitos coincidir, milimetricamente, entre uma tábua e a outra. É cativante, o efeito criado por esta artificial continuidade (ou será rebatimento?) de um desenho natural entre duas faces do mesmo volume geométrico.
Ao chegarmos perto de “Gémeos Falsos”, o nosso olhar é cativado de outra forma. A estes dois cilindros de aço pintado de negro mate, aparentemente iguais, foram extraídos, pela acção do desenho, dois vazios geométricos diferentes. Poderíamos estar a olhar para dentro de duas jarras – já que nos encontramos num interior doméstico simulado, ou numa exposição de design, é difícil não associarmos o que nos rodeia a “coisas para a casa.” Mas quem os desenhou puxa-nos o tapete e diz-nos se tratarem apenas de “objectos geométricos.”
Entre os objectos acima descritos e o termo escolhido, Vieira Baptista define o tipo de design de produto que lhe interessa explorar e mostrar nesta exposição. Não se trata de design enquanto promessa de progresso ou sofisticação tecnológicos – os objectos expostos foram manufacturados, ou seja, feitos à mão, por pequenos fornecedores e artífices utilizando técnicas e materiais rudimentares. Nem do design como uma profissão preocupada em resolver ou mitigar questões sociais ou ambientais – não sabemos onde, como, nem por quem são feitos estes objectos, a lâmpada de “Terrier” é incandescente e nada nos diz se o pinho de Riga das 22 caixas da edição limitada de “Comporta” vem de florestas sustentáveis. Ou do design enquanto criação de produtos exclusivos ou de luxo – apesar de Vieira Baptista ter definido particularmente bem a (re)produção destes objectos e, por conseguinte, a sua escassez; enquanto os seus preços variam entre 300 e 1500 euros + IVA, uns são peças únicas, outros múltiplos de edição limitada e “Terrier”, bem como as caixas “Carril”, têm edições indefinidas (ou seja, é deixada em aberto a possibilidade do seu fabrico em série ad aeternum). Também não se trata do design enquanto disciplina colocada à mercê de uma estratégia de marketing promovida por uma marca, empresa, instituição ou governo.
O design de produto também não é aqui mostrado, e este será talvez o aspecto mais importante a salientar, enquanto actividade produtora de objectos funcionais (nem sempre “para a casa”) de alto valor acrescentado, com destino aos vários circuitos artísticos – das galerias, dos museus, das leiloeiras, da imprensa. Os praticantes desta actividade, frequentemente chamada de design-arte, recorrem muitas vezes a teorias, metáforas, narrativas e outros grandes gestos da arte (como o muito abusado termo instalação) para acrescentar sentido e significado ao seu trabalho, mesmo que nem sempre sejam capazes de os articular ou defender.
“Drawer” é uma exposição bem menos ambiciosa. Mas o que a torna exemplar é porque tanto Miguel Vieira Baptista como a Appleton Square souberam utilizar o espaço e contexto de uma galeria de arte para que, liberto de muitas das coisas que são hoje exigidas a um designer de produto – inclusive o que uma galeria de arte poderia exigir – ele se pudesse concentrar naquilo que é um dos elementos fundamentais do seu trabalho: a demanda, pessoal e obsessiva, pela adequada resolução de um objecto por si projectado. É disso que falam estes pequenos, mas determinados gestos deixados a um canto da galeria.
Comments are closed.