O trabalho de um designer consiste em trazer o futuro para o presente.
Joe Colombo
Primeiro como artista e depois como designer, Joe Colombo testemunhou e interpretou através do seu trabalho as profundas mudanças tecnológicas e sociais ocorridas na Europa do pós-guerra. As formas, objectos e espaços criados pelo designer italiano reflectiram a sua crença no progresso da arte, da tecnologia e da humanidade. Foi a partir dessa crença que Colombo desenvolveu o conceito de habitat, um espaço dinâmico que rejeitava as convenções e tipologias estáticas do passado – como casa, divisões ou mobiliário mas também família, trabalho ou lazer – para se adequar às necessidades do homem moderno. As zonas – de dormir, de estar, de comer – deste habitat não corresponderiam mais às divisões de uma casa, nem seriam recheadas com mobiliário. Tal como a vida, cada espaço seria o que um indivíduo fizesse dele, cada zona um invólucro expectante, activado por equipamentos modulares e multifuncionais.
A Minikitchen pretendia ser um desses equipamentos. Projectada para o fabricante de cozinhas italiano Paolo Boffi e lançada na Trienal de Milão em 1963, esta unidade com menos de meio metro cúbico em madeira e metal continha um fogão, um frigorífico, um abre-latas, gavetas para talheres, superfícies de trabalho e até espaço para livros de cozinha – tudo alimentado por uma única ficha eléctrica. Este todo móvel e dinâmico era mais do que uma soma de partes, mecanismos e funções: a Minikitchen não era um móvel de cozinha. Ela era a cozinha.
Foi também a vontade de activar um espaço através de um equipamento que levou o gabinete Miguel Rios Design a criar o objecto (SUM)One. Criado a partir da apropriação formal e conceptual da peça XXXX de Ângela Ferreira para uma apresentação conjunta pensada inicialmente para o edifício do MUDE – Museu do Design e da Moda, (SUM)One é, tal como Minikitchen, um esboço de futuro.
A forma de XXXXX, ao invés, tem origem no passado – mais precisamente no próprio edifício do MUDE, outrora a sede do Banco Nacional Ultramarino. Criado em 1864 como banco emissor para as colónias portuguesas, o BNU foi um dos principais braços do poder imperial português – e este edifício o epicentro desse poder. A divisão do museu onde as duas obras estariam expostas, a sala Dom Luís Pereira Coutinho, honra o administrador do banco que ordenou a remodelação do edifício da Rua Augusta. Esta inigualável obra “sem orçamento”, projectada por Cristino da Silva e inaugurada em 1964, data do centenário da instituição; nesse mesmo ano, Pereira Coutinho inaugurou também em Lourenço Marques outra emblemática sede do chamado “banco das colónias”. Projectado por José Gomes Bastos, este notório exemplo da arquitectura moderna portuguesa é hoje o mesmo edifício, mas tudo o resto mudou. A cidade onde se encontra não é mais Lourenço Marques. A colónia portuguesa é hoje uma república africana independente. E este imponente bloco de cimento e vidro não é mais a sede do poder financeiro da metrópole. É o Banco Nacional de Moçambique.
Ângela Ferreira encontrou nas duas sedes de poder financeiro – e na tensão entre o espaço da primeira e a forma da segunda – terreno fértil para uma reflexão sobre o poder e o passado colonial português. Este é um objecto construído através da memória e da vida do seu autor, mas que procura, com a sua presença perante nós, activar a nossa memória colectiva.
Ao apropriar-se da peça da escultora e ao sujeitar este objecto a um raciocínio projectual característico do processo de design, o gabinete Miguel Rios Design constrói a partir da forma da sede do BNU em Lourenço Marques, evocada por Ângela Ferreira, uma nova obra inspirada na MiniKitchen de Colombo. Ao incorporar dispositivos mecânicos (rodas, gavetas, dobradiças) e sugerir novas funções (bancada de trabalho, mesa de refeições), (SUM)One pretende questionar a natureza do objecto artístico, atribuindo-lhe uma funcionalidade que lhe é ausente por natureza.
Como em qualquer objecto, ou equipamento concebido através do processo de design, essa funcionalidade apenas existe quando é estabelecida a possibilidade de uma real interacção entre objecto e sujeito. Ou seja, quando é criada – e encorajada – a utilização de um artefacto por um indivíduo.
É precisamente sobre os limites dessa (im)possibilidade que (SUM)One opera: apesar se encontrar no espaço de uma galeria e se apresentar num contexto artístico, este objecto não se encontra desprovido das funções que lhe dão sentido. Durante o tempo da exposição, é passível de ser aberto, fechado, mexido, tocado, usado. Mas mesmo que não lhe seja negada a possibilidade de ser posto a funcionar, aqui não é mais do que uma soma de partes que funcionam. A sua funcionalidade é aqui exposta como algo em potência, como cenário futuro.
Afinal, esta galeria não é uma casa, nem sequer um habitat: por muito que Joe Colombo tenha desejado alterar a forma como activamos as zonas onde vivemos, há espaços que através da sua função activam eles próprios significados, metáforas, histórias a partir dos equipamentos colocados perante nós – e não o contrário. Aqui e agora, sabemos ser capim o que cresce no canteiro de solo africano. Mas quando a exposição acabar e tudo isto for retirado do espaço da galeria, o capim torna-se em erva, o solo africano torna-se em terra e (SUM)One poderá finalmente tornar-se num móvel de cozinha.
Somente através da sua produção em série, distribuição e comercialização – elementos integrantes do próprio processo de design – (SUM)One poderá realmente ser posto em prática. Só assim o equipamento que se encontra à nossa frente poderá, tal como a Minikitchen de Colombo, encontrar a sua verdadeira função: responder às necessidades do dia-a-dia dos seus utilizadores e activar os espaços para onde for levado. Só então, libertos dos significados, metáforas e histórias do passado, poderemos trazer um novo futuro para o nosso presente.
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Texto que acompanha a peça do atelier Miguel Rios Design na exposição “[Sum]One: exercícios de apropriação” que levou à mesma mesma sala da Galeria Filomena Soares uma artista (Ângela Ferreira) e um atelier de design.
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