10 razões para voltar a Montreal

Há destinos que apenas se visitam uma vez na vida. Uma ilha deserta no Pacífico, um templo inca, a floresta tropical do Bornéu, o monte Kilimanjaro ou um sítio qualquer acima do círculo Polar Árctico. As cidades, porém, foram feitas para ir e voltar. Mesmo que as contingências da vida falem mais alto e nos impeçam de regressar às ruas e praças e a todos aqueles lugares que fazem de uma cidade uma cidade, somos sempre levados a pensar que não vimos tudo, que falta ir àquele restaurante, ao museu que estava fechado para obras, ou ver um tal edifício, mas sem os tapumes. Visitar uma cidade não é fazer uma lista de “está vistos”, não é juntar cromos à caderneta, nem carimbos ao passaporte. Por muito remota que seja a possibilidade, queremos sempre poder não ver, mas viver de novo a cidade que visitamos agora.
Daí ter pensado não em contar como foi a minha primeira visita à cidade de Montreal, mas sim fazer a minha própria lista de coisas que me fazem querer lá voltar. Tão breve quanto possível.

Basílica de Notre-Dame
Dizem que ir a Montreal sem ir à sua mais importante igreja é como não ter ido de todo. O que me interessou não foi tanto o templo em si, mas a forma como resume algumas das particularidades da sua história. A primeira capela jesuíta fundada pelos primeiros colonos franceses no local deu lugar no século XVII a uma igreja barroca projectada pelo padre suplício François Dollier de Casson. Chegando a 1800, a igreja tornou-se demasiado pequena para a cidade em pleno fulgor económico que, sob a ambição de grandes comerciantes e industriais escoceses e protestantes, se tornava no maior centro económico da América do Norte – tendo permanecido a maior cidade do Canadá até ser suplantada por Toronto em 1976. A sua ampliação foi encomendada ao arquitecto nova-iorquino James O’Donnell, que escolheu o estilo revivalista gótico tão em voga na altura na Inglaterra e Estados Unidos. O’Donnell, irlandês mas protestante, converteu-se ao catolicismo antes de morrer, mas não chegou a ver a sua igreja, o maior templo religioso da América francófona e anglófona, pronta em 1829. A decoração interior, aplicada entre 1870 e 1900 870 é dos franceses Victor Rousselot e Victor Bourgeau, o arquitecto mais célebre do Quebec do século XIX. As suas torres gémeas – Temperança e Perseverança – vieram mais tarde, tal como a capela do Sacré-Coeur que, reconstruída em 1980 após o violento incêndio sofrido em 1978, ainda hoje é considerada como a capela oficial de casamentos de Montreal, celebrando mais de 100 uniões por ano – incluindo a de Céline Dion com René Angélil, em 1994. Vale a pena fazer uma visita (e guiada ainda mais) à basílica para saber mais sobre os cruzamentos entre as origens, confissões religiosas e desígnios de poder e imortalidade dos fundadores de Montreal.

Martlet House
Montreal foi fundada por franceses como o principal entreposto de peles da América, mas foram os comerciantes e industriais escoceses e ingleses que expandiram e desenvolveram a cidade em plena Revolução Industrial. Neste bairro encontram-se as suas mansões e edifícios comerciais, muitos deles construídos no estilo, mas também no granito escocês que voltava como lastro em navios que atravessavam o Atlântico carregados de peles. Daí o campus da Universidade de McGill, a mais importante universidade anglófona de Montreal e uma das mais prestigiadas da América, parecer-se mais com Edimburgo do que Paris. Muitas destas edificações foram demolidas para dar lugar aos arranha-céus nos anos 60 e 70 que perfazem grande parte do centro da cidade. Um deles, a sede da Seagram Company, foi desenhado em 1928 por David Jerome Spence como réplica de um castelo escocês do século XVI, em honra do whisky produzido pela família Bronfman, que fundou o maior império de bebidas destiladas do mundo. Nos anos 50 a Seagram muda a sua sede para Nova Iorque e Phyllis Bronfman Lambert, a filha do fundador da empresa, convence o seu pai que Mies Van der Rohe deveria projectar o seu edifício, que viria a ser um dos principais marcos arquitectónicos do chamado “estilo internacional”. A primeira sede na Peel Street foi rebaptizada de Martlet House e pertence hoje à universidade de McGill. Phylis Lambert, ainda activa como directora do Centro Canadiano de Arquitectura, foi a grande pioneira do movimento de preservação do património em Montreal.

CCA
Vim a Montreal para ir à inauguração de uma exposição no CCA, ou Centre Canadien d’Architecture. Só este centro de pesquisa e de exposições de arquitectura e design urbano vale a pena a vinda à cidade. Fundado por Phyllis Lambert em 1989, o CCA tem um dos mais prestigiados e arquivos de arquitectura e promove exposições e iniciativas inovadoras durante todo o ano.

Habitat 67 e Biosphere
A Exposição Universal de 1967 deu à cidade infra-estruturas importantes como o sistema de metro e o complexo de ligações e galerias comerciais no subsolo entre edifícios conhecido como “a cidade subterrânea”. Mas o que fica na memória são dois marcos arquitectónicos, revolucionários à altura e ainda hoje marcantes; a Biosphere, a esfera que Buckmister Fuller criou para o pavilhão dos EUA da Expo’67 e que hoje é um centro de interpretação ambiental, e o Habitat ’67, uma experiência de habitação modular do arquitecto israelita Moshe Safdie. Este complexo de apartamentos impressiona ainda pela sua escala e estrutura invulgar e, se passear entre os cubos empilhados de divisões não for suficiente, é ainda possível, através de marcação, visitar o apartamento do próprio Moshe Safdie.

Boulevard Saint Laurent
Este boulevard, também conhecido por Main Street, é daquelas avenidas infindáveis, “à americana”, que vão mudando radicalmente consoante as zonas que atravessam e onde se pode passar um dia inteiro. Da margem sul à norte da ilha (sim, Montreal está erguida, como a sua “prima directa” Manhattan, num ilha), a avenida divide a parte historicamente francófona, a leste, da anglófona, a oeste. Começa junto a um McDonald’s na zona do porto, passa pelos portões com dragões de Chinatown e pelo bas-fond dos bares de strip e lojas abandonadas, para se ir transformando em zona cultural – Musée Juste pour rire , ou o teatro da comédia francófona – e trendy à medida que sobe a encosta. Chegando ao Plateau Mont-Royal, a tradicional área de instalação de imigrantes na cidade que se estende às travessas pedestres, ruas e avenidas circundantes. Identificadas pelas bandeiras nas janelas, toldos de lojas e sobretudo pela oferta de alimentação, é possível distinguir as várias ondas de imigração: portuguesa, grega, judaica, italiana… A avenida torna-se em artéria nocturna de bares e restaurantes ao longo de vários quarteirões, para ganhar um carácter mais “de bairro”, com mercearias, o apesar das galerias, lojas e ateliers de design que vão aparecendo já no bairro de Mile End – em Montreal o “fim da estrada” é o que está a dar. A última atracção da avenida é mesmo o mercado Jean Talon, o maior mercado abastecedor da cidade, na zona de Little Italy.

Schwartz’s
Em pleno Plateau Mont-Royal fica o Schwartz’s, uma daquelas instituições urbanas que nunca desilude. Abriu em 1928 no Boulevard Saint Laurent, atendendo à clientela judaica que se havia instalado no início do século XX. Partilha hoje o quarteirão com restaurantes de frango assado portugueses, está aberto – e cheio – todos os dias até bem tarde e nunca perdeu a fama de ter a melhor carne marinada e fumada deste lado do Atlântico, a qual se come em sanduíches de pão de centeio e se acompanha com pickles e cola de cereja produzida exclusivamente para o estabelecimento.

Bixi
Não bastasse o sistema de transportes funcionar extremamente bem (sobretudo quando pensarmos que estamos na América do Norte) e a cidade ser quase plana, foram instaladas em Maio as Bixi, bicicletas de acesso fácil e pago. À semelhança de outras cidades europeias (como Oslo, Paris ou Barcelona) mas também americanas (Washington DC) é possível agora percorrer as centenas de kms de ciclovias e, com algum sentido de aventura, todo o resto da cidade.

Poutine
Montreal parece sofrer de uma permanente crise de identidade: fica na América, mas fala-se francês. É a segunda cidade do Canadá e a principal cidade do Québec, mas não é nem a capital do país (Otawa) nem da província (Cidade do Québec). Uma parte significativa dos habitantes desta cidade de três milhões de habitantes são bilingues, ou mesmo trilingues, e um quinto nasceu fora do país. Montreal pode não ser a Paris da América, mas a língua e cultura francesas dominam as artes, a música e mesmo a paisagem do que é hoje uma das cidades mais cosmopolitas do continente. Longe do debates nacionalista e separatista do Québec, a expressão da cultura e forma de pensar francesas é visível por todo o lado: nos sinais de trânsito, no tom da publicidade, nas escolhas dos tipos de letra, na oferta de banda desenhada “à belga” em vez dos comics americanos. Já para não falar nos croque monsieurs e outras francesises. Talvez a mais famosa dessas afirmações seja mesmo a Poutine, uma dose valente de batatas fritas com queijo coalhado e molho de galinha, espesso e quente. Ideal para o longo, frio e nevoso inverno, esta especialidade pesada e gordurosa é servida por toda a cidade, desde os diners locais chamados “casse-croûtes” até à cadeia de fast food canadiana Harvey’s.

Fonderie Darling
Como qualquer cidade contemporânea que se preze, Montreal tem vindo a transformar as suas áreas portuárias e industriais em centros criativos e artísticos. Na Cité du Multimédia (uma designação bem francesa), antigos edifícios fabris em ferro e tijolo albergam estúdios de animação, centros de investigação em comunicações móveis e empresas de software.  Mas o melhor sítio para almoçar é mesmo o restaurante da Fonderie Darling, uma antiga fundição tornada centro de exposições e residência artística.

Hotel Queen Elizabeth
Foi na suite 1742 deste hotel que John Lennon e Yoko Ono fizeram o seu “bed-in” de duas semanas em 1969, pelo fim da guerra no Vietname e paz no Mundo. Este ano, o Museu de Belas Artes de Montreal organizou uma exposição comemorativa deste acontecimento, e do movimento artístico começado por John e Yoko. Mesmo que não se fique no hotel, não se pode ficar indiferente à sua mensagem inspiradora.

Em Maio de 2009 fui a Montreal para a inauguração da exposição Speed Limits no CCA. Antes de ir, perguntei à editora da Vida e Viagens, Ana Pereira da Silva (obrigado Ana!), se estaria interessada num artigo, “short and sweet”, sobre a cidade. O texto demorou algum tempo a ser publicado: só saiu em Dezembro de 2009. Eu regressarei a Montreal em Julho de 2010…

(As fotografias nesta página foram todas tiradas por mim e nem sempre correspondem a cada uma das “razões”).

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