O chamado “artesanato urbano” é uma dimensão emergente do design. Em Portugal tem uma impressionante rede de seguidores. Rosa Pomar é o centro deste universo particular.
Diz trabalhar “aos soluços”. Entre cuidar das filhas, colaborar na fundação do avô, receber e enviar encomendas, responder a “e-mails”, actualizar o blog e outros afazeres diários, resta-lhe pouco tempo dos seus longos, mas estruturados dias para pensar, desenhar e executar as suas criações. O trabalho, a que chama “tempo para si”, acontece entre as 22h00 e a 1h00. Mas isso não é um problema: se para um designer – de acordo com a definição “canónica”, moderna, de design – a forma segue a função, para Rosa Pomar a forma segue o afecto. Pois entrar no seu universo é ter acesso ao que ela cria e produz, e a toda a sua enorme rede de ligações afectivas, quer sejam pessoais, visuais ou materiais.
O carinho da execução
Tudo começou com essa “expressão material de afecto” que são os seus bonecos, pelos quais se tornou conhecida. Começou a fazê-los no início de 2004, pouco tempo depois do nascimento de Elvira, a sua filha mais velha. Por várias razões: por não encontrar nada no mercado que lhe enchesse as medidas, por se lembrar dos bonecos de pano que tinha quando era pequena, feitos pela mãe, e porque, desde que se lembra, gosta “de coser, tricotar, bordar e tecer”.
Desde que os mostrou no seu blog, o interesse e os pedidos não pararam de aumentar, e hoje mais de 700 bonecos integralmente feitos à mão andam ao colo de crianças e nas mãos dos seus pais em todo o mundo. Todos são únicos, como Rosa explica: “Não há dois bonecos iguais. Cada um é decorado à mão com veludo de lã e galões bordados ‘vintage’, e todos têm uma etiqueta de pano única e numerada.” Cada um destes bonecos tem também um preço elevado – entre 70 e 80 euros – o que não impede que as encomendas ultrapassem em muito a capacidade de produção de Rosa e da sua assistente. Afinal, o preço é revelador da sua qualidade e execução – aquilo que em inglês se chama “craftsmanship”.
Artes e ofícios
O termo inglês “craft” pode ser traduzido para português como “ofício” ou “mister”; está associado à manufactura (do latim “manu”, mão, + “factura”, feitura), à habilidade e ao conhecimento empírico. É geralmente traduzido para português como “artesanato” e mais recentemente tem vindo a ser usado – no contexto do design ou da produção material – como algo que caracteriza todo um grupo de pessoas que produz e comercializa objectos em baixa escala, mas não necessariamente a partir das formas e processos tradicionais próprios do artesanato. Estes novos “artesãos urbanos” têm vindo a mudar radicalmente a forma como olhamos para o artesanato e para o design como disciplina geradora de objectos e produtos.
A exposição “My World, New Crafts”, parte da edição de 2005 da ExperimentaDesign – Bienal de Lisboa, foi uma das primeiras realizadas a nível mundial sobre este novo universo. De acordo com os seus comissários, debruçava-se, “sobre o crescente uso de metodologias importadas do artesanato na produção do design contemporâneo e sobre o crescente número de designers que devolvem aos objectos uma dimensão de individualidade e identidade que os distingue, e autonomiza, face ao anonimato e padronização da produção industrial e digital.” Reunindo criadores de quatro países, mostrava exemplos muito diferentes desses objectos – desde papel de parede com imagens de lixo a mesas de alcatifa e taças com decorações projectadas, passando por uma casa-ninho ou malas de senhora feitas em lares de idosos. Foi um dos primeiros focos de atenção do “mundo do design” para este fenómeno, a que têm dado atenção não só o meio académico e a imprensa especializada, mas cada vez mais empresas produtoras de objectos feitos industrialmente.
Um blog, uma criança, uma máquina fotográfica
Rosa, contudo, não é uma designer: “Não sei o que a minha filha diz aos colegas na escola…” O que ela faz não é facilmente categorizável. Com uma tese de mestrado em História Medieval ainda por entregar, e um curso de ilustração na Ar.Co, elege uma “intensa e marcante” temporada em Nova Iorque como um dos maiores impulsos a uma carreira que ela designa como sendo de “mãe ‘blogger’ que faz bonecos e outras coisas de pano e os vende através da Internet”. Em 2001, fez um curso de Verão na School of Visual Arts e ganhou contacto com a comunidade de ilustradores da cidade. Tomou consciência do fenómeno “crafty”, a verdadeira “indústria caseira” dos EUA, onde não só donas de casa fazem “tricot” e colchas em “patchwork”: “Nos EUA, de onde esta vaga ‘crafty’ chegou, a ordem das coisas passa mais pela Net e por pessoas com formações variadíssimas, muitas delas com filhos pequenos, que dão por elas a deixar de ter vergonha de dizer às amigas que gostam de fazer ‘tricot’”.
Regressada a Portugal, trabalha como ilustradora, dá aulas e acumula ainda outras profissões, mas nunca deixa de desenhar, e sobretudo de fazer coisas. Não tem qualquer tipo de vergonha em partilhar o seu prazer em tricotar – é uma das fundadoras do Grupo de Tricotadeiras de Lisboa – e uma boa parte do seu dia-a- dia com o resto do mundo: o blog que criou em 2001 é continuamente um dos mais visitados em Portugal, e a partir de 2003, com o nascimento de Elvira, muda para sempre, e não só por passar a ter o nome Ervilha Cor de Rosa. “Eu tinha um blog, uma criança e uma máquina fotográfica. As coisas juntaram-se”. É a partir do blog de Rosa que acedemos ao que ela vai fazendo, vendo, pensando, sentindo. E daí a sua importância no contexto da “cena crafty” nacional: além de fazer/produzir, e de partilhar/vender, ela torna a usual cadeia de produção e de consumo numa realidade mais complexa, mais pessoal, mais envolvente.
Portugal “crafty
Em Portugal, onde a maioria das indústrias continua a não reconhecer o valor do design e do trabalho dos designers, muitos destes acabam por projectar, e produzir, os seus próprios produtos, porque não conseguem que a indústria os fabrique e porque muitas vezes preferem ser eles a controlar todo o processo de produção, distribuição e venda. A eles juntam-se as outras pessoas que, como Rosa, não têm uma formação em design, mas simplesmente gostam de “fazer coisas”. Isto faz com que qualquer loja, mercado ou feira que diga vender “design português” tenha de recorrer em grande parte a “coisas crafty”, como bonecos, bolsas, carteiras, roupa, bijutaria, “crachats” ou outros objectos. Infelizmente, ainda parece haver muito pouco do resto, daquilo a que chamamos produtos feitos industrialmente e pensados por portugueses, para encher as prateleiras das lojas e as vidas dos seus clientes. Até quando?
Rosa dá uma perspectiva: “Esta ‘bolha crafty’ há-de rebentar, claro. Por mim, não sei muito bem até que ponto estou dentro ou fora dela. Se, por um lado, o meu método de trabalho é ‘artesanal’, por outro, algumas coisas que estou a fazer enquadram-se mais dentro do design industrial… Não sei se esta epidemia de feiras de ‘artesanato urbano’ se manterá durante muito tempo, [terá de haver] necessariamente uma selecção natural. Umas pessoas evoluirão para um trabalho mais sólido e interessante, outras cansam-se e desistem. Muito deste ‘artesanato’ não tem mais motivação por trás do que o desemprego ou um trabalho mal pago e pouco interessante”.
As “power-moms”
O blog de Rosa é como um epicentro deste grupo de pessoas, a esmagadora maioria mulheres, que se dedicam a este “novo-velho ofício”, a maior parte delas usando uma máquina de costura, linhas e tecidos. Longe do estereótipo da “costureirinha” de Beatriz Costa, elas são cidadãs informadas, frequentemente com formação académica superior, consumidoras “pró-activas” e, muitas, verdadeiras “power-moms”. Para Rosa, aquilo a que chama “pedagogia do fazer” é uma das componentes mais significativas de se tornar uma “nova artesã”, pois a consciência do “fazer”, do que envolve e do valor das coisas, é algo que se encontra cada vez mais desvirtuado. Quando a cadeia de produção começa e acaba na mesma pessoa o controlo do processo é total, desde a matéria-prima aos desperdícios. Por exemplo, Rosa usa desde tecidos japoneses a recriações de tecidos de sacas de arroz americanas da II Guerra Mundial comprados no eBay, desde chitas portuguesas a capulanas africanas feitas na Holanda. Ou seja, tecidos com história(s). Mas cada vez é mais difícil, em Portugal, “encontrar tecidos, pois já não há senhoras que mandem fazer saias”. Rosa concorda que é mais fácil – e barato – comprar uma camisola na Zara, desfazê-la e aproveitar o seu tecido para fazer outras coisas do que comprar um bom tecido a metro, nas cada vez mais raras lojas de tecidos. Por outro lado, quando encontra uma loja particular, fala dela no blog, é frequente os donos agradecerem-lhe a publicidade, devido ao acréscimo de visitas que isso proporciona, como diz num dos seus “posts” mais recentes: “Nas lojas que tenho divulgado recebo, embaraçada mas contente, sorrisos largos e agradecimentos sinceros.”
Portugal esquecido?
Outra das dimensões mais interessante do fenómeno “crafty” é, e também em Portugal, o crescente interesse pelo que poderemos chamar passado moderno e industrial. Coisas como o mosaico hidráulico, os painéis publicitários em azulejo do Nitrato do Chile, as loiças de Sacavém, os móveis Olaio, as chitas das “Misses”, os carimbos, os lápis Viarco, as retrosarias, as lojas de tecidos e muitas outras coisas que não são antiguidades, mas que já são antigas, são cada vez mais memórias do passado. A tecnologia, a concorrência estrangeira, a mudança de hábitos de consumo, o chico-espertismo, as fusões e aquisições de empresas ou as normas europeias têm empurrado – com notáveis excepções – as indústrias tradicionais e as “queridas marcas” dos portugueses para a falência, e os seus produtos para o esquecimento, substituindo-os pelo que parece ser produtos sem passado e marcas sem identidade.
Rosa reconhece este cenário, mas desdramatiza: “Aquilo que me diz a experiência é que as coisas existem enquanto são necessárias/úteis. Perdida a sua finalidade na vida quotidiana, desaparecem. As chitas desapareceram, ou quase, com a modernização dos teares, algures durante os anos 60, parece-me… Se ainda se conseguem comprar alguns materiais de fabrico tradicional/artesanal isso deve-se quase exclusivamente aos ranchos folclóricos e outras festividades regionais cujas celebrações implicam a sobrevivência dos trajes. Por mim, adoro perceber os circuitos destes materiais: quem é que os compra, quem vende, porquê, de onde vêm… e depois utilizá-los no meu trabalho. Acho que há alguns materiais tradicionais que podiam ser relançados com sucesso: para dar um exemplo, o surrobeco, uma espécie de feltro grosso de lã semelhante ao burel. Se fosse tingido e distribuído por outras lojas, seria certamente comprado pelas pessoas que usam e abusam daquele feltro sintético de péssima qualidade que se vende por toda a parte. O que não há é comunicação nenhuma entre quem ainda produz estes materiais e os potenciais interessados, nomeadamente a vaga de ‘artesãos urbanos’ que se multiplicou exponencialmente nos últimos anos.” E são estas mesmas pessoas que produzem coisas a partir de aparentemente obsoletos “Manuais de Lavores”, revistas e “sites” de “tricot” que têm apreciado, registado e recordado o que conseguem em blogs, “sites” de partilha de imagens e outras plataformas, sobretudo “online”, não deixando esquecer todo este nosso património, e ao mesmo tempo, usando-o como inspiração para novos usos e objectos.
Ainda a História
Rosa Pomar não está apenas interessada na sua própria produção material. No futuro, a sua alma de investigadora pode vir mesmo a falar mais alto: “Às vezes, sinto falta do trabalho de investigação, que é aquilo que aprendi a fazer na escola. O blog permite-me algum escape – vou escrevendo, de vez em quando, coisas muito curtas sobre assuntos que me interessam, mas há coisas que gostava de aprofundar. O tema das chitas, por exemplo, tem muito que se lhe diga. O que me interessa é aquilo a que se pode chamar talvez a história do património gráfico, ligado ao têxtil ou não. Perceber os canais de circulação das coisas, a forma como determinados padrões agradam tanto que se universalizam, perceber por que é que em Moçambique se vendem actualmente lenços de algodão absolutamente idênticos aos nossos lenços antigos de Alcobaça…”
Rosa mostra saber gerir habilmente o seu tempo e a sua actividade, o que será talvez uma das razões do seu sucesso. Mas até onde quererá crescer? Hoje, conjuga a sua produção artesanal com o trabalho na Fundação Júlio Pomar, e vai pensando tanto no seu futuro como no da Ervilha Cor de Rosa: “O meu trabalho com o meu avô é bastante informal e o tempo que me toma varia consoante a quantidade de projectos. Terei pena se deixar de o fazer um dia, mas, por outro lado, não posso dizer que a ideia de me dedicar unicamente às minhas coisas não seja extremamente apelativa. Para já, tudo o que faço é a uma escala muitíssimo reduzida. As peças são únicas ou feitas em pequenas séries e, por um lado, é isso que lhes dá o interesse. Há projectos que tenho em mente para um futuro mais ou menos próximo que teriam de ser feitos a uma escala maior. O passo seguinte está por dar, mas acho que se aproxima. E tenho duas filhas pequenas – a mais nova ainda está em casa comigo todo o dia – que são o meu projecto mais importante de todos. Tenho conseguido não dar passos maiores do que as pernas, mas ir crescendo devagarinho. Se continuar assim, vamos bem.” Passo a passo, ou melhor, ponto a ponto.
Publicado originalmente no suplemento Ípsilon do jornal Público de 21.09.2007
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