O que têm em comum o restaurante Bica do Sapato, o ICEP Portugal, a Galp Energia, a rede Andante no Porto, as plantas de rede da Carris em Lisboa, a cerveja Sagres ou o candidato do CDS às eleições intercalares de 2007 à Câmara Municipal de Lisboa? Uma coisa muito simples: todos usam o mesmo tipo de letra na sua identidade visual.
Esse tipo de letra chama-se Dax, foi criado pelo alemão Hans Reichel em 1995, e é hoje uma impressionante família tipográfica de 54 estilos, pesos, e as mais inimagináveis adaptações de caracteres e alfabetos. Este extraordinário caso de sucesso do design tipográfico tem não só eco em Portugal – a verificar pelos exemplos citados – mas é hoje, pouco mais de 10 anos após a sua criação, o segundo tipo de letra mais vendido da editora alemã de tipos de letra FontFont, uma das maiores a nível mundial (o tipo nº 1 é a DIN, outro peso-pesado da tipografia das últimas décadas).
Apregoando qualidades como elegância, leveza, alguma neutralidade e uma grande versatilidade, a Dax tem sido profusamente usada em todo o mundo desde os anos 90, os quais lhe deram a forma e o estilo. É o tipo de letra por excelência dos redesigns, dos restylings, dos facelifts de identidades de multinacionais algumas delas centenárias, e muitas delas desejosas de se livrarem da sua “pesada” estética moderna do pós-guerra (leia-se Univers ou Helvetica), cujo exemplo maior é exemplo a UPS, a qual trocou um antiquado embrulho por um volumétrico escudo. Ou de marcas nacionais como a Sagres, que perdeu as suas antiquadas serifas de outros tempos, mas que ganhou uma colecção de minis “design” assinadas. É também um bom tipo para instituições e empresas governamentais que se dividem, aglomeram e transformam ao sabor das políticas nacionais, como o ICEP (desde 2 de Julho AICEP, que agora tem um logotipo versão-teste-de-daltonismo em Frutiger Light), e uma boa letra para empresas que, como a Galp Energia, face a fusões e aquisições, se tornaram em conglomerados cada vez maiores, com cada vez menos rosto, mas com uma cada vez maior dificuldade em encontrarem a sua própria… identidade.
Agências de publicidade, empresas de branding, designers de comunicação em regime freelance ou em colectivo tentam todos os dias encontrar, e aplicar, essa(s) identidade(s), em prazos cada vez mais curtos para empresas com cada vez menos tempo e, face à crise da qual tardamos a sair, cada vez menos dinheiro disponível para “se encontrarem”. Talvez seja essa falta de tempo e de dinheiro que leve a um visível défice de atenção tanto para com o passado, como para com o presente, e talvez mesmo uma escassez de inspiração dos designers de comunicação nacionais. Pois se alguns designers admitem trabalhar, quase como princípio, com um leque muito limitado de tipos de letra (geralmente os “clássicos” como Didot, Bodoni, Futura ou Helvetica) outros parecem simplesmente ter preguiça – ou será medo de arriscar? – em procurar novos tipos de letra, de imagens, de linguagens, de coisas. Se muita gente diz que a Dax “já não se aguenta”, que é datada, superficial, nineties, etc, porque é que ainda há pouco levámos com o Telmo Correia e os seus slogans em Dax distorcida nas ruas de Lisboa, e “nos encontramos” com rótulos e caricas e toda a parafernália identitária Sagres por todo o país, a partir deste Verão forrado de Dax?
Não é que eu ache que a Dax não tenha “serifa por onde se lhe pegue” – porque não tem, e contra factos não há argumentos – ou que outros tipos de letra usados e abusados por designers e pessoas com acesso ao Microsoft Word sejam de forma alguma intocáveis, ou que esteja ainda a fazer da Dax o “tipo expiatório”. Mas quando qualquer designer de comunicação realiza um trabalho, concretiza um output, está, mesmo que não tenha essa noção, a contribuir para o património e para a paisagem gráficos a nível local, regional, nacional ou mesmo global. Com efeito, ao potencial alcance do seu trabalho deve corresponder (pelo menos) uma proporcional reflexão sobre não só a forma, mas sobretudo a identidade, a personalidade, a unicidade das coisas que partilha com – potencialmente – o resto do mundo. E isso requer informação, investigação, criatividade, investimento, trabalho. Ou seja, não deve limitar-se só a ir à lista de tipos – legais ou piratas – que tem instaladas no seu sistema, operativo e/ou mental, e escolher a que mais ou menos serve. O processo de design é por natureza um processo de escolhas, mas estas deverão enriquecer, em vez de limitar, o resultado final. E este será tanto mais enriquecedor – para todos nós – se essas escolhas forem feitas de forma inteligente, por designers que compreendam as várias dimensões do seu trabalho. Que sejam mais exigentes, não só com o que fazem, mas também com o que os rodeia. Que no fundo, olhem para além do seu sistema e nos dêem novos tipos. E isso, tipo, é menos difícil do que parece.
Texto publicado no site do MUDE – Museu do Design e da Moda / Colecção Francisco Capelo em Julho de 2007
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