Com o rótulo de “recém-licenciadas”, Joana Baptista Costa e Mariana Leão, 25 e 26 anos, podem ter pouco trabalho para mostrar, mas têm muito para dizer. Desafiando a sua profissão, exigem uma reflexão sobre o seu trabalho, promovem o debate dentro da “classe” e sobretudo, através do que dizem, são críticas. Pois se o trabalho da maioria dos “designers” é – por definição – dar forma a uma função, a uma informação ou a uma mensagem, alguns, como elas, não ficam satisfeitos apenas com isso.
O manifesto
A primeira grande manifestação da vontade de se fazerem ouvir teve a forma de um cartaz. Numa noite de 2004 colaram por toda a cidade das Caldas da Rainha mais de 30 cartazes fotocopiados, sublinhados e colados à mão — um “Manifesto Contra!”, para sermos precisos, com 42 coisas. Do “adjectivo ‘design’” à “arrogância da originalidade”, da “educação do cliente” aos “‘designers’ que fazem exposições de design gráfico” e terminando com “o choradinho”, muitas destas coisas vinham sendo ditas, ouvidas, trocadas entre as duas (e a co-autora do manifesto, Sílvia Prudêncio, com quem dividiam casa na altura). Mas elas queriam que fossem comunicadas a um público maior, mesmo que sem grandes formalismos. “Queríamos fazer passar aquelas ideias e ver o seu efeito sobre as pessoas. Vimos inércia, apatia, sorrisos cúmplices, desconforto…” Estes cartazes tiveram um impacto menor do que esperavam na comunidade local, mas uma considerável expressão na ainda pequena blogosfera dedicada ao design em Portugal, onde encontraram um público que reagiu e discutiu calorosamente sobre o assunto. Na altura ninguém soube, contudo, a identidade de quem o suscitou: “Achámos que para essa informação ser isenta e valer por si era essencial a invisibilidade. O que veio a verificar-se foi mesmo muita curiosidade. Quem eram as pessoas que tinham largado aquela bomba?! E depois foi muito divertido acordar de madrugada, vestir uns fatos fabris despersonalizados, enfiar uma meia na cabeça e colar cartazes de balde e vassoura na mão (nas ruas e na escola)…” Três anos depois, os cartazes já não existem, desapareceu o blogue que tinha publicado na altura o manifesto, mas ele reaparece aqui. Ainda fará sentido? Irreverência estudantil, “boutades”, “private jokes” e outras lamentações à parte, facilmente qualquer “designer” – tanto estudante como profissional – se reverá em, pelo menos, uma das coisas referidas nesta longa lista. Tendo como inspiração o bem mais ácido “Manifesto – Odiamos: (…)” da “K”, a célebre revista portuguesa dos anos 90, partilha com outros manifestos alguma insensatez, ingenuidade e humor, mas sabe tocar nas feridas certas e expor muitas das fragilidades não só do design, mas de toda a sociedade portuguesa.
A escola
Após completarem o ensino secundário – respectivamente nas escolas António Arroio, em Lisboa, e na Soares dos Reis, no Porto –, Joana e Mariana entram em 2000 para a ESAD – Escola Superior de Artes e Design das Caldas da Rainha. É aqui que se conhecem e que desde o primeiro ano passam a pensar, a trabalhar e, ultimamente, a escrever em conjunto, assumindo a sua entidade de dupla: “Depois dessa empatia inicial que junta as pessoas e que as faz tornarem-se amigas, veio a convivência diária. Crescemos e aprendemos juntas (o que é muito importante!) e, acima de tudo, houve uma vontade sempre sentida por ambas de que juntas podemos sempre ser melhores do que individualmente.” Longe dos academismos das Belas-Artes de Lisboa e do Porto, e graças a um dinâmico conjunto de professores e de alunos, a ESAD tem vindo a ganhar um lugar de destaque no ensino e na promoção do trabalho dos seus alunos, sobretudo na área do design – de que são exemplo as representações no estrangeiro e a sua exposição de finalistas, ainda uma raridade no contexto do ensino do design em Portugal. Para quem conhece as Caldas da Rainha, e especialmente para quem estudou na ESAD nos últimos dez anos, sabe que o Caldas Late Night é uma das datas mais importantes do calendário da cidade. Nesta noite, os estudantes da escola abrem as suas casas, invadem as ruas e mostram o que querem mostrar uns ao outros, ao resto da cidade e a quem quiser aparecer. Há de tudo: “performances”, concertos, exposições, instalações e outras manifestações, mais ou menos sérias, e que reflectem o espírito criativo único que se vive nesta pequena cidade do Oeste, onde nos anos 90 “aterrou” uma escola superior de arte e design. E foi precisamente nessa noite, nessa cidade, que surgiram todos aqueles cartazes: “O manifesto é fruto desse mesmo ambiente, só podia ter sido feito nesse contexto. Tentava ser provocatório, desafiar aquilo que nesse mesmo contexto era entendido como ‘design’, num local em que as artes plásticas eram o elemento mais activo e dinamizador. Nesse sentido identificávamo-nos mais com essa forma de pensar: ‘Se tenho algo a dizer, pego num cartaz e colo em toda a cidade.’ Agrada-nos essa forma acessível de fazer as coisas.”
O trabalho
Desengane-se, porém, quem pensar que Joana e Mariana não faziam mais nada na ESAD do que colar cartazes. Desde o primeiro ano, quando trabalharam na organização do Café Design (o encontro anual das escolas de design portuguesas), até ao último – conscientemente repartido em dois anos lectivos para poderem trabalhar com tempo e de uma forma que honrasse a sua exigência – conseguiram iniciar uma revista (que infelizmente, e demasiadas reuniões depois, não foi a lado nenhum) e participar activamente no evento Comunicar Design. Esta semana da ESAD dedicada ao design de comunicação foi mesmo um dos projectos mais marcantes da sua carreira enquanto dupla criativa; não só por fazerem parte da organização, mas principalmente por terem sido as autoras da identidade gráfica do evento, o que lhes valeu uma distinção no concurso Jovens Criadores de 2006. “O Comunicar Design já ia, em Maio de 2005, na sua terceira edição, quando nós, finalistas de Design Gráfico/Multimédia, iniciámos o trabalho, decidindo temas, programação, conferencistas, actividades associadas, etc. A imagem do evento fazia parte da ordem de trabalhos. Foi um projecto muito aliciante, no qual depositámos muitas expectativas e vontades. Ainda há pouco tempo falávamos nas voltas que os projectos dão, desde a primeira ideia até ao espaço público. Este saiu completamente diferente do que inicialmente pensámos! Existiram mais duas propostas, bastante desenvolvidas, antes da definitiva. Os pré-projectos foram muito mexidos, mastigados, revirados até chegarem ao estado de terem forçosamente que ser postos de lado, esquecidos… Foi essencial esse corte, essa quebra, para prosseguir para uma produção mais esclarecida – o nosso professor Paulo Ramalho foi o elemento provocador de toda essa mudança. E [este processo] foi tão delicioso para nós. O cartaz tem fotografados dois cartazes dentro dele, e toda a comunicação (cartaz, programa/desdobrável, postal, e-convite, imagens para ‘site’…) foi desenvolvida enquanto narrativa, sobre como esses dois objectos estariam em situações de uso (ou não uso) – que papel têm no espaço público, chamando sempre para a cena a presença do cartaz –, colocado em espaços menos convencionais de ‘consumo’. No fundo, queríamos demonstrar que o design está muito para além dos espaços habituais e também pode estar numa árvore (como nas festas populares). O design não está só nos lugares e nas estruturas instituídas, o design é uma ‘linguagem de acção’”.
O mundo real
É frequente dizer-se que “a faculdade” é a oportunidade para fazer tudo, para experimentar, para sonhar. E que depois, no chamado “mundo real”, já não haverá lugar, nem tempo, nem orçamento para nada disso. Emprego, contas para pagar, clientes, prazos deitam por terra aspirações profissionais e pessoais de muitos ex-estudantes. Quase um ano depois do fim do curso, e três anos depois do “Manifesto Contra!”, a pergunta torna-se legítima: ainda acreditam em tudo aquilo? Mariana sorri, pensa e responde também a sorrir: “Não tenho todas as coisas de cor na minha cabeça, mas sim, penso que sim.” Joana concorda e completa: “O mundo cá fora não é ideal, mas é melhor do que muita gente diz.” Assim, apesar de as duas terem trabalhado na apanha da fruta no Verão passado para pagar os últimos meses de renda nas Caldas, e de Joana ter trabalhado durante pouco tempo numa agência em Lisboa, as duas reconhecem que não têm “de ter um emprego e pronto” e que, acima de tudo, vale a pena esperar, fazer aquilo em que se acredita e não traçar demasiados planos. Hoje trabalham no Porto, no pequeno atelier de design Gráficos do Futuro, cujos clientes vêm principalmente das áreas cultural e editorial. Os seus fundadores, Edgar Silva e João Leão, reconheceram a sua qualidade de dupla e convidaram-nas a aumentar para o dobro o número de trabalhadores do atelier. Aí, e por enquanto, parecem ter encontrado a sua situação laboral ideal: continuar a trabalhar, e a pensar, juntas. Daí poder perguntar-se o que acharam do recente artigo do Ípsilon sobre a comunidade artística do Porto: “A ‘movida’ portuense tem muitas semelhanças com o ambiente caldense. Estudámos numa cidade em que as pessoas também estavam habituadas a serem, elas próprias, o elemento activo. Claro que a escala é provavelmente menor, mas havia essa familiaridade, essa necessidade de ‘mostrar’ em pequenos espaços, espaços caseiros, tudo o que se fazia. Neste sentido, actualmente o Porto tem semelhanças com as Caldas, mas estamos cá há pouco tempo e o contexto é muito diferente. Precisamos de tempo para sentir a cidade como ‘nossa’ e viver nela para lá ‘da cidade que nos dá emprego’.”
O futuro
Joana e Mariana não são pessoas do contra. Pelo contrário. São duas “designers” que têm tudo – o talento, o conhecimento, a convicção – para construir uma significativa carreira dentro da área pela qual são apaixonadas. Mas têm antes disso uma opinião, uma voz crítica sobre o universo da sua própria profissão e, em última análise, sobre o contexto e o impacto do seu trabalho na sociedade. E continuam dispostas a comunicar essa opinião, através do seu trabalho como “designers”, e também através da escrita – como no blogue que iniciaram no último ano da ESAD. “A crítica, que nos inspira, faz-nos voltar atrás em muitas certezas que temos, o que é muito bom. Falar sobre design, sobre pequenas coisas, faz parte de nós, ‘designers’. É (ou deveria) ser natural. No fundo é escrever sobre tudo aquilo que passamos horas (ou anos) a fazer, a ver, discutir, a esquecer… Toda a comunicação é necessariamente política, não temos naturalmente que fazer manifestos, mas tomamos decisões, produzimos… Parece-nos também natural sermos responsabilizados pelo que fazemos. A crítica é essencial nesse aspecto e é imperativa.” O editorial do primeiro número da revista “K” – que conhecem bem, pois além do manifesto inspirou outros dos seus projectos académicos – terminava com duas frases que poderiam ser suas: “Esta revista vai ser mais comunicativa do que informativa. O nosso objectivo não é sermos respeitados, compreendidos, seguidos, ou representados ou definitivos – é sermos lidos.”
www.teseapuros.wordpress.com
http://joanaemariana.com/
Publicado originalmente no suplemento Ípsilon do jornal Público de 07.11.2007
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