Num Portugal que abraçou a leveza do design para todos, há quem tente desafiar a indústria, a tradição e a identidade do design português. Marca: Boca do Lobo. Mais um capítulo de um mapa português que nestas páginas vamos desenhando.
Amândio Pereira, Ricardo Magalhães e Pedro Sousa criaram a marca Boca do Lobo em 2005. Desde a apresentação da primeira colecção, no ano passado, na feira 100% Design em Londres, não têm parado de construir a que é, provavelmente, a marca de mobiliário mais consistente do país. Contudo, nenhum dos sócios — apesar da sua média de idades ser apenas 28 anos — parece ter pressa. A marca foi criada após cinco anos de trabalho dos três no ramo do design de mobiliário e interiores, e através da pesquisa e identificação de referentes visuais e materiais, de tradições decorativas e construtivas, de fontes variadas de inspiração, mas sobretudo de identificação de necessidades e de mercados. Através desta atitude de prudência, mas ao mesmo tempo de determinação e audácia, contrariaram a estratégia de colagem, de conservadorismo e cópia fácil que caracteriza grande parte da indústria portuguesa de mobiliário. Desafiaram a própria estratégia de “design e desenvolvimento de projecto” que continua enraizada em muitas empresas, e que é traduzida, numa frase, por Pedro Sousa (um dos três sócios e o designer principal da Boca do Lobo): “O patrão vai lá fora ver peças, e a fábrica faz mais ou menos o que o patrão pede”.
Estes três sócios são os próprios patrões. Não esperaram que a indústria desse resposta às suas ideias, nem esperaram que o telefone tocasse para terem trabalho. Decidiram criar a Boca do Lobo, que gerem a partir dos escritórios da sua fábrica em Rio Tinto. Aí coordenam a produção feita no interior da fábrica e a realizada por vários artesãos da região. Ao mesmo tempo, Pedro Sousa diz que o atelier de design gráfico com que trabalham é encarado como extensão da equipa – o atelier de design gráfico participa nas decisões estratégicas da Boca do Lobo. Se há uma coisa que os sócios da Boca do Lobo não levaram muito tempo a entender é que para ter uma marca de mobiliário não chega fazer móveis e colocá-los à porta da fábrica.
Antes de tudo há o produto: a primeira colecção é composta por mais de 25 peças que se integram nas tipologias clássicas de mobiliário doméstico, como armários, consolas, mesas, candeeiros, biombos, espelhos. Até aí nada de novo. Talvez seja essa noção, de “novo”, que o design como disciplina invoca, que estas peças querem desafiar. Quando olhamos para a colecção como um todo nada nos parece revolucionário, pelo contrário, tudo nos parece “clássico”. Olhando mais de perto, vamos descobrindo as diferenças. Em primeiro lugar, as dimensões e proporções: tudo é “larger than life”, e sem vergonha de o ser. A seguir, a qualidade de execução é irrepreensível: da lacagem à gravação, do dourado dos puxadores ao tecido dos “abat-jours”, passando pelos papéis que forram as gavetas dos aparadores, conseguimos compreender as horas gastas e o trabalho envolvido em cada peça. E há mesmo uma delas que fala de tudo isso.
Gloriosamente decorativa
O aparador Soho é o porta-estandarte da filosofia da Boca do Lobo. É a peça mais publicada da colecção, e percebe-se porquê. O que poderia ser um normal aparador “de salão” é uma cacofonia de frentes de gavetas e portas com vários acabamentos, puxadores dourados, prateados e em cristal, formando uma composição gloriosamente decorativa e quase ofensivamente luxuosa (mesmo nas simples gavetas de arquivo, pintadas de azul imperial). Mas ao abrirmos estas portas e gavetas e olhando o móvel de outros ângulos apercebemo-nos que cada frente abre para um compartimento totalmente diferente (cores, papéis que forram os fundos, madeiras nobres) de uma caixa em vidro transparente fumado e assente numa – mais uma vez – clássica base em madeira pintada de branco. Ou seja, o que à partida nos parece um excêntrico mostruário de acabamentos e puxadores antigos é na realidade um móvel inventivo e sofisticado, e também uma convite à nossa memória de outros aparadores que conhecemos, desde as antiguidades palacianas às coisas das nossas avós. A estas referências são acrescentados novos e surpreendentes elementos, como a caixa de vidro que expõe a estrutura da peça, ou próprio nome, Soho, que nos leva para a “downtown” de Manhattan — muito longe de Rio Tinto, onde é executado por artesãos da região.
Grande parte das peças desta colecção, cujo ponto de partida foi o aparador Soho, têm nomes associados a Nova Iorque: Madison, Guggenheim, Metropolitan, Bronx, Hudson. Os nomes valem o que valem, mas a consistência não se constrói apenas através de um referente comum. Quer a mesa Pearl (com embutidos em pau santo e jacarandá) quer o espelho Apollo (uma das peças mais ostentativas) não têm medo de deixar cair as linhas simples e modernas que associamos a “móveis de design” (por muito distorcido que o conceito seja) para, em oposição, cultivarem uma presença particular, uma opulência própria, e um “peso” que parece se ter perdido nos dias de hoje.
Este “peso” não é só físico ou visual, é simbólico. Estas pesadas e caras peças falam-nos daquilo que nos parece faltar hoje. Palavras como “ofício”, “memória” ou “história” parecem estar afastadas das coisas que compramos, possuímos e, a certa altura, deitamos fora. Tudo o que temos dura cada vez menos tempo: do telemóvel (e a crescente parafernália digital) ao carro, da máquina de lavar a roupa à mesa da sala, todas as coisas vivem, connosco, sob uma cada vez maior pressão de serem actualizadas ou substituídas.
A irresistível leveza do habitar
Curiosamente, o “peso” desta colecção surge numa altura de mudança de paradigma na relação dos portugueses com as casas, com a forma como as mobilam e com os objectos que os rodeiam. Esta mudança prende-se com a facilidade acrescida que passou a existir na aquisição de mobiliário: desde 2004 que muitos portugueses já parecem nem se lembrar o que era viver sem IKEA. Os produtos estão por todo o lado, desde os copos e talheres dos restaurantes “da moda” do Chiado, em Lisboa, às prateleiras nos cenários dos “Morangos com Açúcar”, das cozinhas do “Querido Mudei a Casa” às camas das crianças acolhidas pela Casa do Gil, passando pelas estantes “flat-pack” arrumadas em porta-bagagens com os bancos rebatidos a caminho de Coimbra ou Portalegre. Milhares de pessoas em Portugal estão não só a “viver mais a sua casa” como a IKEA nos sugere, mas cada vez mais a habituar-se a viver no seu bem desenhado e acessível universo. Ainda bem. A IKEA mostra-nos que o design não tem de ser nem caro, nem complicado, nem um adjectivo, uma palavra estrangeira no nosso vocabulário. Além disso, o conceito de habitar da marca é que a nossa casa pode adaptar-se facilmente às nossas necessidades, que os seus produtos não duram necessariamente para sempre, e que é bom mudar de ideias. E os portugueses estão a fazê-lo a todos os níveis: no mês passado o primeiro-ministro esteve no lançamento da primeira pedra das três fábricas de mobiliário que a IKEA começou a construir no concelho de Paços de Ferreira. A escolha do Vale do Sousa, e especialmente Paços de Ferreira, reconhece Portugal como país prioritário para esta marca sueca, quer em termos de produção industrial, quer na sua já demonstrada “performance” de vendas (100 milhões de euros de facturação nos três primeiros anos em apenas uma loja, segundo dados da imprensa). Os portugueses vão poder contar, até 2015, com mais cinco lojas deste gigante do mobiliário, que no fim do ano abre a segunda loja do país, em Matosinhos.
De facto, parecemos rendidos a esta “leveza” com que a IKEA nos permite não só aumentar as nossas exportações, mas mudarmos ou melhorarmos o nosso estilo de vida. Por quanto tempo? Essa “leveza” é muitas vezes criticada (em países onde a marca existe há décadas, como a Alemanha ou a Suécia) de levar a uma “monocultura material”, de preconizar uma “estética loura” dominante sobre as especificidades culturais locais, ou de ampliar essa obsolescência material a tudo o que possuímos. E se a maioria das pessoas não quer gastar nem todo o seu dinheiro, nem toda a sua vida a mobilar a casa, ninguém quererá viver toda a sua existência dentro de uma página do catálogo da IKEA, por muito simples que isso possa ser. Felizmente há todo um mundo para além de todas estas coisas com nomes nórdicos, incluindo em Portugal.
O sentido do lugar
A indústria portuguesa do mobiliário, maioritariamente baseada no eixo entre Paços de Ferreira (a “Capital do Móvel”) e Gondomar, acolheu a vinda da IKEA para a região com optimismo. Este sector tem vindo a recuperar de profunda crise, e apesar do desaparecimento de muitas empresas, o volume de negócios da região tem aumentado, assim como as exportações, que significam mais 50 por cento da produção desde 2003, segundo o site da Associação Portuguesa das Indústrias de Mobiliário e Afins. No entanto, os exemplos de marcas com capacidade de inovação no design dos seus produtos, de investimento em imagem e comunicação integradas e acima de tudo com visão e identidade cimentadas ainda são difíceis de encontrar em Portugal.
Boca do Lobo é uma dessas empresas. Sediada em Rio Tinto, concelho de Gondomar, não poderia ter surgido, como conclui Pedro Sousa, noutra zona do país. O facto de a sede ser numa região com tamanha tradição de marcenaria, carpintaria, talha, tornearia e outras técnicas de trabalho em madeira (a matéria-prima por excelência das suas peças) é uma das suas grandes mais-valias. O fácil acesso a tecnologia e modos de fazer, perpetuados durante gerações por artesãos e pequenas oficinas especializadas, faz com que velhas técnicas sejam reabilitadas para criar novos objectos, desde a inspiração nas juntas de bois minhotas ao uso de velhos tornos “que já não se fazem”. O facto de a Boca do Lobo existir na “Região do Móvel” faz com que seja também mais fácil aprender com exemplos, e mesmo com erros, das indústrias em redor.
Sob o lema “exclusive design” esta marca posiciona-se, através de uma identidade forte — visível na imagem gráfica, na linguagem de comunicação e fotografia, nos nomes das peças –, como sinónimo de qualidade, sofisticação e requinte em mobiliário e na criação de ambientes. Os clientes principais são ateliers de arquitectura e interiores que poderão incluir nos seus projectos “peças-chave” para habitações ou outros espaços. Estas peças reflectem um certo gosto “burguês” típico do Norte de Portugal, mas o apelo é universal; a subtil ironia que caracteriza as peças, que juntam tiques do mobiliário clássico com materiais e combinações inesperadas, faz com que seja possível imaginar uma delas num grande apartamento da Foz do Douro, mas também numa mansão de um “rapper” em Miami. Há definitivamente um “brilho” na Boca do Lobo e esse “brilho”, como todos os outros, vem com um preço: o “design exclusivo” não é para todas as bolsas. Até agora, e apesar das vendas estarem a corresponder às expectativas, o interesse no seu trabalho – a presença em acções de promoção no estrangeiro promovidas pelo Centro Português de Design e pelo ICEP tem ajudado – tem sido mais internacional do que nacional. Mas o tempo é um factor importante: com o lançamento de quatro novas peças em 2007, e uma nova colecção para 2008, a Boca do Lobo não tem pressa em ver resultados. Voltando ao “peso das coisas”: Pedro Sousa diz que uma das inspirações do seu trabalho é criar “coisas que vão ficando”, bens que passam de geração para geração, objectos que constituem uma herança. Estas coisas desafiam o próprio tempo em que vivemos, e enriquecem-no. Se a Boca do Lobo acrescenta alguma coisa ao design português será talvez dizer que, mesmo numa altura em que o design nunca foi tão acessível, há coisas que não têm preço. E esperemos que o façam durante muito tempo.