Cliché: o design pode mudar o mundo. Facto: na Cidade do Cabo, durante cinco dias, milhares de pessoas ouviram e discutiram ideias e projectos onde isso já está a acontecer. Chama-se Design Indaba
Sabe qual é o Objecto Mais Bonito da África do Sul 2007? Um aplicador de preservativos. Num encontro de design, a beleza de um objecto é importante; num encontro de design na África do Sul, onde 10 por cento da população tem o vírus da sida, é mais do que isso: é fundamental. Este aplicador, parte do produto Pronto – um pacote de três aplicadores e respectivos preservativos à venda na África do Sul por cerca de três euros – pretende relevar que a “beleza” de um objecto está para além da sua forma, englobando também o seu potencial económico e sobretudo social (no fundo, uma interpretação mais abrangente e responsável do design).
O prémio, atribuído a Roelf Mulder do atelier de design da Cidade do Cabo …XYZ Design por um júri presidido pelo designer holandês Jurgen Bey, destacou o aplicador de preservativos entre 15 objectos candidatos ao prémio Most Beautiful Object in South Africa, promovido em Fevereiro pela Design Indaba. A Cidade do Cabo foi, entre 21 e 25 de Fevereiro, a capital mundial do design. Um pomposo e inesperado título para a segunda cidade da África do Sul, mas uma ambição real para os mentores do que é já um dos mais interessantes, mais bem organizados e mais inspiradores eventos dedicados ao design. A conferência anual Design Indaba (este ano na décima edição), já faz parte de um “calendário global” de conferências, exposições, feiras e outros eventos anuais ou plurianuais que se realizam um pouco por todo o mundo, durante todo o ano. A multiplicação de eventos dedicados ao design, arquitectura e outras “indústrias criativas” tem vindo a criar um verdadeiro circuito não só para os oradores e participantes, mas também para investidores, agentes culturais, imprensa e estudantes, que viajam muitas vezes grandes distâncias para participar em mais um nó da “rede criativa global”.
Ao fim de cinco dias na Cidade do Cabo é impossível não ficar contagiado pela ambição, energia e determinação da Design Indaba. Poucas manifestações do “calendário global do design” poderão apresentar perspectivas tão diversas, muitas vezes contraditórias, do universo a que se dedicam: do último e delirante projecto de Jaime Hayon para o Dubai ao FabLab da township de Shoshanguve, perto de Joanesburgo; da Sketch Furniture das Front aos candeeiros feitos a partir de coloridas embalagens recicladas de Heath Nash; da obsessão pela normalidade de Jasper Morrison à total perversão desta nas ilustrações de Paul Davis; da “monocultura gráfica” dos Vignelli aos “pixels humanos” das grandes manifestações norte-coreanas mostradas por Daljit Singh; da enigmática “função da arte” à “supercomédia” de Reggie Watts. À primeira vista não parece haver um fio condutor entre a escolha de convidados, o trabalho que mostram, o público a que se dirigem, a fabulosa cidade que os acolhe, e o país cada vez menos “insular” que encontram. Mas durante estes cinco dias do Verão de Fevereiro, o mundo – desenvolvido e em desenvolvimento – viu no Cabo duas coisas: ideias globais serem livremente apresentadas e discutidas, e ideias glogais serem localmente aplicadas. E, ao mesmo tempo, o mundo testemunhou a afirmação da criatividade local como parte de uma realidade global, o que é uma das maiores valências da Design Indaba. Talvez por isso devamos mudar o pomposo, mas merecido, título temporário da Cidade do Cabo para capital “glocal” do design.
Fabrico Pessoal de Objectos e Ferramentas
Estas apresentações de trabalho/ carreira profissional foram desafiadas por três projectos em que o design como disciplina surge associado a “causas maiores”, assumindo-se como uma ferramenta fundamental de iniciativas e plataformas mais complexas, que têm vindo a revolucionar os processos de criação, fabrico e utilização dos recursos pela sociedade contemporânea. Neil Gershenfeld, do Center for Bits and Atoms do MIT, falou do nascimento e implementação à escala global dos FabLabs – Laboratórios de Fabrico Local – destinados ao que chama “fabrico pessoal de objectos e ferramentas”, utilizando software open source e tecnologias como a prototipagem rápida e o corte a laser. Estes FabLabs, instalados em locais tão diferentes como a Noruega, Costa Rica, EUA e África do Sul, pretendem demonstrar como a revolução digital pode operar ao nível material, dando soluções às necessidades imediatas das populações – inclusive as mais carenciadas – e devolvendo aos indivíduos a capacidade real de criar o que realmente precisam. De instrumentos de análise de leite na Índia a aparelhos de refrigeração no Gana, os FabLabs podem criar praticamente tudo.
Arquitectura Política
Os conceitos de open source e de utilização de recursos e know-how locais são também elementos transversais da iniciativa Architecture For Humanity (AFH), uma ONG presidida pelo arquitecto britânico e “eterno optimista” Cameron Sinclair. Numa apaixonada apresentação, na qual criticou severamente a figura de “arquitecto-estrela” e descreveu a arquitectura como “um acto político”, Sinclair falou do passado, presente e futuro da organização que iniciou em 1999 com apenas 24 anos. A AFH evoluiu de uma pequena rede de arquitectos e designers que contribuíam com o seu trabalho para a resolução de problemas de alojamento em crises humanitárias para o que é hoje: uma da mais importantes e descentralizadas ONG a nível mundial. Respondendo às necessidades de alojamento e infra-estruturas de comunidades em Nova Orleães, EUA, no Sri Lanka, e também na África do Sul, com uma eficácia e entendimento dos contextos locais ímpares e desafiando a própria noção de ajuda humanitária, a AFH tem hoje um plano ainda mais ambicioso. Possibilitada pela atribuição do prémio TED em 2006, a iniciativa Open Architecture Network caracteriza-se como uma comunidade online e open source dedicada à melhoria das condições de vida de comunidades em todo o mundo, através do design e arquitectura sustentáveis. Esta iniciativa pretende revolucionar a forma como a arquitectura é pensada, praticada e aplicada, possibilitando partilhar projectos, conhecimento e experiência. Através desta plataforma, um determinado projecto pode ser pensado, testado e construído de forma colaborativa, incluindo no processo não só arquitectos, mas também engenheiros, líderes comunitários, poder local e os próprios utilizadores/cidadãos, chamando a cada um a responsabilidade de construir as estruturas que melhorarão as suas condições de vida.
Mudar o Mundo
Imediatamente antes de Sinclair, subiu ao palco Alex Steffen, o criador e director de outra iniciativa que está a revolucionar a maneira de agir globalmente face a um desígnio comum: o desenvolvimento sustentável. WorldChanging é uma plataforma global sem fins lucrativos que pretende, através de vários media, explorar ferramentas, modelos e ideias para um futuro melhor. Partilhando modelos de desenvolvimento, exemplos de sucesso e ferramentas de trabalho, apela à colaboração de indivíduos e comunidades com vista a dar uma resposta eficaz e consciente aos desafios a enfrentar pela humanidade, desde a produção e consumo local de alimentos à pressão política sobre os centros de decisão legislativa e económica, exigindo acção face às alterações climáticas.
Indaba, da Cidade do Cabo para o mundo
O evento – ou a “marca” – Design Indaba vai cada vez mais além da ideia de conferência que Ravi Naidoo lançou em 1994. Naidoo, director da consultora de marketing e comunicação Interactive Africa, e já uma das pessoas mais influentes na África do Sul, teve a ambição de fazer do seu país uma potência criativa a nível mundial, usufruindo da vaga de optimismo e de crescimento que este tem conhecido desde a nova Constituição de 1993 (e que culminará com a realização, pela primeira vez no continente africano, do Campeonato Mundial de Futebol em 2010). Hoje, Indaba é sinónimo do maior evento de design em África e um dos mais reconhecidos no mundo, mas também de toda uma dinâmica que quer colocar o design e as indústrias criativas no topo da agenda política e empresarial do país. O seu impacto é visível antes de chegarmos à Cidade do Cabo, através de uma campanha mediática que apela à importância do design na sociedade, no centro da cidade em pleno renascimento, e na cada vez mais activa comunidade local de criadores, agentes culturais e instituições ligadas ao design. No Centro de Convenções da Cidade do Cabo, o auditório principal acolhe os mais de 1500 delegados inscritos (o bilhete para a conferência ronda os 500 euros), e um auditório secundário, onde as sessões são transmitidas por vídeo, em directo, para cerca de 1000 estudantes (bilhetes de preço reduzido). Em paralelo à discussão, e além dos workshops, masterclasses e debates a decorrer noutros auditórios, teve ainda lugar a Design Indaba Expo. Esta exposição-feira permitiu aos criadores locais de áreas tão diversas como mobiliário, joalharia, cerâmica, têxteis, moda e iluminação mostrarem o seu trabalho durante cinco dias a mais de 20 mil visitantes, imprensa e cada vez mais compradores e investidores estrangeiros, numa verdadeira montra do talento sulafricano, pontuada por desfiles de moda, lançamentos e atribuição de prémios como o Most Beautiful Object in South Africa.
Estrelas Mundiais trabalham com Empresas Locais
Durante a conferência, tiveram ainda lugar duas sessões especiais, onde a organização da Design Indaba mostrou ser, além de promotora da apresentação e discussão de ideias, impulsionadora de projectos concretos. Uma é a iniciativa 10×10 (Ten by Ten), a qual compreende dois projectos: o 10×10 Products, que quer colocar designers de renome internacional a trabalhar com pequenas e médias empresas sul-africanas, com vista ao lançamento no mercado global de produtos “Made in South Africa”; e o 10×10 Housing, no qual arquitectos famosos irão trabalhar com ateliers locais de forma a contribuir, através de projectos de habitação de baixo custo, para resolver a crónica falta de habitação urbana na África do Sul. A participação activa na sociedade sul-africana esteve também patente na apresentação de propostas criativas para os FanFests do Campeonato Mundial de Futebol de 2010. Três agências de publicidade nacionais responderam ao repto da Design Indaba para apresentar ideias para estes eventos de aglomeração de fãs, gigantescas festas de rua que desafiam o espectáculo do futebol dentro dos estádios que estão a ser planeados por todo o país. E, para mostrar que estas apresentações eram mais do que só ideias, o presidente do Comité Organizador do Campeonato Mundial de Futebol estava na plateia a assistir.
[ c a i x a ]
Design Indaba
O mundo na Cidade do Cabo
Mais de 40 oradores deslocaram-se à Cidade do Cabo de vários pontos do hemisfério norte, mas também da África do Sul, para uma conferência de três dias dedicada à apresentação e discussão de ideias sobre design. Essa foi, de facto, a principal componente do encontro de Fevereiro – “indaba” significa “reunião” ou “congregação” em zulu, um dos 11 idiomas oficiais da África do Sul). Ao elenco de luxo de profissionais das áreas do design de comunicação e de produto juntaram-se outros “não-alinhados”,que introduziram outras perspectivas, dimensões e interpretações, tão inesperadas como estimulantes, do universo do design. No design de comunicação, as “vozes da experiência” incluíram Wally Ollins (guru global do branding), Milton Glaser (o “convidado-surpresa” que participou em videoconferência a partir de Nova Iorque) e Massimo e Leila Vignelli que, com uma naturalidade ímpar, falaram dos seus mais de 35 anos de carreira conjunta, numa apresentação aplaudida de pé pelo auditório de 1500 pessoas. Um entusiasmo apenas equiparado com a apresentação/“performance” sobre a dimensão, peso e valor de um pixel dos “designers” Simon Waterfall e Daljit Singh, que desafiaram as palestras mais convencionais de Andy Stevens dos Graphic Thought Facility, Georgie Stout dos 2×4, Neville Brody e Tobias Frere-Jones. Na ilustração, o universo pessoal de Paul Davis contrastou com o comentário político de Zapiro, o mais polémico cartoonista sulafricano, que através do seu trabalho soube dar, sobretudo aos mais de 20 por cento de espectadores estrangeiros da conferência, uma perspectiva acutilante da situação social e política do país, culminando noutro auditório rendido que o aplaudiu de pé. Nomes sonantes do design de produto como Hella Jongerius, Jurgen Bey, Jasper Morrison e mesmo Jaime Hayon, com a sua imparável energia e humor, não conseguiram, nas suas apresentações, estar à altura da presença em palco das quatro “designers” (Sofia Lagervist, Charlotte von der Lancken, Anna Lindgren e Katja Sävström) do colectivo feminino sueco Front, que apresentaram os seus três primeiros anos de actividade pela primeira vez em conjunto, no que foi um dos mais memoráveis momentos da conferência. Entre os sul-africanos, Heath Nash fez a melhor representação, que impressionou com as suas complexas estruturas geométricas tridimensionais e com o seu trabalho com artesãos locais e uma matériaprima global: embalagens usadas.
Publicado originalmente no suplemento P2 do jornal Público de 14.03.2007
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