Aprender com Viena

Da esquerda para a direita:  Thomas Geisler, Sebastian Menschhorn, Lilli Hollein e Tulga Beyerle do outro lado da montra da instalação de Menschhorn, na Demel, a mais famosa pastelaria de Viena. Foto: kramar/fischka.com
Da esquerda para a direita: Thomas Geisler, Sebastian Menschhorn, Lilli Hollein e Tulga Beyerle do outro lado da montra da instalação de Menschhorn, na Demel, a mais famosa pastelaria de Viena. Foto: kramar/fischka.com

O pacote turístico “Cidades Imperiais” é, desde a queda da Cortina de Ferro, uma das mais populares opções de viagem na Europa à disposição de qualquer turista de classe média. Viena, Budapeste e Praga, as antigas capitais do Império Austro-Húngaro, encontram-se a apenas algumas horas de distância, e duas delas estão também ligadas pelo mesmo rio – o que faz com que a visita seja rápida, as referências semelhantes e as memórias duradouras. Porém, hoje em dia não é só a glória dos palácios de reis e imperatrizes, as valsas, os cafés e o goulash, ou os passeios ao longo do Danúbio, que unem estas três capitais culturais europeias: desde este Outono elas encontram-se também unidas pela celebração do design.

Festivais há muitos
Não é preciso ser um “turista cultural” ou um “consumidor de cultura” para saber que hoje há, em todo o mundo e todos os dias, festivais para tudo e para todos. Do cinema aos táxis, da música ao marisco, da literatura à magia, da dança ao fogo de artifício, não há cidade, vila ou aldeia que não tenha pelo menos um. A estes juntam-se bienais, trienais e outras manifestações que colocam o sítio onde se realizam num qualquer mapa a explorar para quem estiver interessado.
Um desses mapas é o mapa global do design. Cada vez mais cidades reclamam o seu estatuto como capitais – temporárias – da disciplina: verdadeiras capitais como Londres, Belgrado ou Buenos Aires, outras cidades como Turim, Melbourne ou Joanesburgo, e mesmo países inteiros como a Irlanda, Singapura ou Estados Unidos celebram o design em festivais com dimensões, orçamentos e ambições muito diferentes.
E há muito pouco de “festivaleiro” nisto: Estes eventos, cuja maioria assume o nome genérico de “Semana do Design”, começaram por gravitar em torno de uma feira ou de outra iniciativa industrial ou comercial – como é o caso do Salão do Móvel, em Milão, ainda o ponto mais alto do “calendário global de design” – promovendo a estreita, e óbvia, ligação entre o design e economia.

É a criatividade, estúpido!
Muitos outros nasceram com o objectivo de salientar a valência da comunidade criativa local, e mais do que isso revelar o contributo do design, e de toda a “cultura de projecto”, para o desenvolvimento económico, social e cultural de uma cidade, região ou país.
São portanto festivais a levar a sério, pois promovem o que é considerada cada vez mais a classe social mais importante para o crescimento económico no mundo desenvolvido: a “classe criativa”. Este termo é igualmente levado a sério já não só por académicos e economistas, mas cada vez mais pelos governantes que entendem o que ela significa. Daí que mais cidades queiram atrair investimento através da criação e promoção de “plataformas para a criatividade”.
Mas com tantos festivais e outras celebrações, o que fica no fim da festa? Qual é o verdadeiro retorno do dinheiro público e privado investido nestas manifestações? Quem as promove? Quem nelas participa? Que público(s) tentam atingir? Porque são importantes? E, em última análise, o que as distingue?

O que Viena tem
Se a capital austríaca é historicamente um “destino de cultura”, a partir de 2007 é também um “destino de design”. Com a primeira edição da Vienna Design Weeks, que teve lugar em Outubro, Viena junta-se às duas outras capitais imperiais — Praga celebra este ano a nona edição do festival designblok, Budapeste a quarta edição do festival designhét – com alguns anos de atraso, mas pronta a recuperar o tempo perdido.
É também com um atraso de meses, mas com o devido afastamento e aclarar de vistas, que falamos um pouco com dois dos três mentores deste “grande passo em frente” do design austríaco: Tulga Beyerle (comissária, autora e consultora de design), Thomas Geisler (comissário, professor e investigador) e Lili Hollein (jornalista, comissária).
As quatro respostas que se seguem são tão precisas quanto esclarecedoras. Sem deixar a auto-crítica de parte (ou não fossem eles vienenses, os auto-denominados queixosos da Europa) e mostrando ao mesmo tempo um entusiasmo e ambição genuínos, revelam que um potencial centro criativo regional e europeu não é construído por decreto, mas que só faz sentido quando pensado com consequência, ambição e, sobretudo, com uma visão partilhada (pelas autoridades e poderes locais, regionais e nacionais, pela indústria, pelas universidades, pelas instituições culturais, pelos criadores e, no fim de tudo, pelos seus cidadãos) do futuro.

Qual é o vosso balanço da Vienna Design Weeks (VDW)? Foi um grande salto em comparação ao ano passado, em que as primeiras edições da Conferência e dos Passionswege (ver caixa) já mostravam que havia lugar para mais. Acham que Viena está preparada para ter uma semana do design todos os anos? Como pensam que vai evoluir?
Tulga Beyerle (TB): A VDW é dedicada ao design e à cultura, ou à cultura do design. Seguramente não é uma feira, por isso o mais importante será manter, e constantemente elevar, a qualidade do evento. Projectos como a Passionswege estão a provar que a VDW pode ser muito boa. Mas é natural que existirão sempre projectos comerciais – mas nós manter-nos-emos os curadores de todos os projectos. O nosso lema é “menos é mais” – não queremos mandar as pessoas para o lado oposto da cidade e desiludi-las com trabalho medíocre, como já vimos noutras cidades e suas semanas do design.
Thomas Geisler (TG): Pessoalmente acho que há ainda muito a fazer para definir um perfil específico, alguma coisa que a faça especial, algo que apele à curiosidade das pessoas e as traga a Viena. (…) Para além das atracções turísticas habituais, Viena tem uma grande oferta de cultura contemporânea: as suas “cenas” da arte e da moda já são conhecidas, e a do design pode vir a seguir. Penso que posicionar o festival de forma eficaz, bem sucedida e sustentável será o nosso desafio, ano após ano.

Viena tem sem dúvida o capital para isso: de acordo com o Look/Book da Departure (ver caixa), Viena é a 5ª região mais rica da Europa. Observam um crescente interesse económico-empresarial no design em Viena? Muitas “Semanas do Design” correm o risco de ser só “ar quente”, se a indústria local ou nacional não as apoiar. O que frequentemente não acontece…
TB: Acredito que a Departure deu certamente um grande impulso económico à indústria criativa de Viena – apoiando uma grande densidade de jovens profissionais criativos e estimulando a sua auto-confiança. Mas não tenho a certeza que a economia austríaca no geral terá ainda um melhor entendimento do design. Existem algumas empresas – os suspeitos do costume – onde isso se observa, mas não podemos comparar a Áustria à Alemanha ou à Suíça – para não falar da Itália. O que é interessante ver, e um sinal que isso pode mudar, é o facto dos dois nossos principais patrocinadores serem organizações económicas: uma é a Departure, a outra é a Câmara de Comércio de Viena.
TG: Penso que uma das principais razões para fazer este evento e o porquê dessas organizações nos apoiarem é promover o design junto de uma indústria assente, na Áustria, em pequenas e médias empresas, a maior parte das quais ainda nas mãos de famílias, e que estão elas próprias sofrer mudanças de geração. E isso é importante para estabelecer uma cultura de design – talvez seja naturalmente um optimista, mas sentimos ventos de mudança. Ela tem de acontecer: de outra forma, a Áustria será ultrapassada pelos seus vizinhos a Leste. Outro dos objectivos deste festival é fazer lobby político: uma cultura de design só poderá ser estabelecida se o próprio governo e as instituições públicas verem o design como um factor cultural e um património nacional – e não só como o porta-estandarte da inovação e crescimento económico na sua próxima campanha.

192,000 pessoas visitaram os museus de Viena durante a Lange Nacht [a Longa Noite dos Museus, que teve lugar no dia 6 de Outubro, dia em que todos os museus da Áustria estiveram abertos até à uma da manhã], e isso mostra que há um público para a cultura em Viena – o que talvez não seja surpresa para ninguém. Mas como poderá a VDW afectar o chamado “homem comum”?
TB: Em geral poderemos dizer que Viena tem um público cultural muito interessado e sofisticado, mas afectar o “homem comum” é o nosso objectivo a longo prazo – precisaremos de três a cinco anos, e até agora nem sequer temos o orçamento de marketing da Lange Nacht! O nosso objectivo não passa só por atrair o “homem comum”, mas sim fazer com que ele ou ela se envolva efectivamente, ou seja, gostaríamos de trabalhar mais com a cidade e com as suas instituições.

Como vêem a evolução das três semanas de design consecutivas de Praga, Viena e Budapeste? Pensam que se tornarão mais integradas? De que forma? E já agora, têm uma explicação para Viena ter sido “a última a chegar”?
TB: Achamos muito importante desenvolver uma rede mais integrada entre estas cidades – e outras de países da ECL (Europa Central e de Leste). Mas passo a passo. E não nos restringirmos ao antigo império, mas falarmos da “Mitteleuropa” em geral – o que significa também o Norte de Itália, ou o Sul da Alemanha, por exemplo. Viena tem o potencial de se tornar numa plataforma do design entre Norte e Sul, Este e Oeste. Porquê ter chegado em último lugar? Bom, sendo uma saturada e arrogante capital ocidental – e conhecida pela sua atitude tão conservadora quanto passiva – não me espanta que as cidades do Leste, cheias de energia, a energia de romper com o passado, mudar o presente e alcançar um futuro melhor, estejam à frente de Viena.
TG: Talvez seja bom que Viena tenha esperado até toda a gente à sua volta ter começado primeiro – podemos sempre aprender com os seus erros. Por outro lado, foi certamente essa pressão à nossa volta que fez a VDW acontecer. Estava no ar – e nós os três talvez tenhamos sido o grupo certo para o começar.

[c a i x a]

DESTAQUES

Departure
Esta organização pertencente à Agência Económica de Viena apoia, segundo diz, “profissionais criativos que pensam e agem economicamente, e se consideram parte da vida económica da cidade”. De acordo com o seu Look/Book – um inteligente e sedutor relatório de actividades, e uma inspiração para qualquer cidade que se aspira a criativa – foram apoiados em 2007 um total de 89 projectos propostos por estruturas que incluem empresas centenárias de manufactura de cristal a programadores de jogos de computador, passando por editoras discográficas, plataformas online e designers de moda, próteses ou mobiliário. Foram investidos 7,2 milhões de euros de fundos públicos, que impulsionaram um total 29 milhões de euros de fundos privados, e originaram 527 postos de emprego: os números da criatividade falam cada vez alto em Viena.

“Design 07 – Die Mitte”
A conferência internacional que chamou a atenção do mundo do design em 2006 voltou este ano à reputada Universidade de Artes Aplicadas, uma das mais antigas da Europa. O seu único e inovador formato é composto por nove sessões de debate, que decorrem simultâneo em três salas da Faculdade, nenhuma delas com mais de 150 lugares. É assim fisicamente possível assistir a apenas um terço das conversas moderadas pelos três comissários da VDW, que fluem entre os mais de 25 participantes de todo o mundo, sem recurso a imagens ou pódios. É pura conversa e estímulo intelectual, em que se juntam designers, directores de museus, empresários, antropólogos, psicanalistas, sociólogos e outros estudiosos em discussões, por vezes bem acesas, sobre as várias dimensões do design. Sob o tema “Die Mitte (O Meio)” várias declinações do termo foram debatidos este ano, entre as quais se contavam: “Projectar para Museus ou para o Mercado – estratégias de design e de produção entre o museu e o mercado de massas”, “Coleccionar tralha – quantos objectos do quotidiano precisa uma colecção de design para fazer uma afirmação relevante para o futuro?”, “Mainstreaming – o design para o meio da sociedade, a classe média”, “O Meio é a Mensagem – humor, sátira, ironia e o seu sentido mais profundo – no design” ou o mais interessante para muitos: “Perdidos e Achados – a classe média em desaparecimento e em crescimento: as dinâmicas dos estratos sociais na Europa e na Ásia”, onde o sociólogo Jens S. Dangschat se juntou a Patrick Cox, o director criativo da agência de branding Wolff Olins, num surpreeendente e eloquente debate sobre a evolução da classe média e a sua relação com “classe criativa” (praticamente todo o público da conferência) ao longo da história, e possíveis cenários futuros. Esta conferência, além de ser um excelente exemplo da abertura do meio académico para a prática profissional e empresarial, é também demonstrativo de como a originalidade e personalidade são características fulcrais para o sucesso de evento desta natureza.

MAK
O Museum für Angewandte Kunst, ou Museu de Artes Aplicadas, fundado em 1864, é um dos mais antigos e importantes museus do seu género do mundo. Não só pelas suas colecções de objectos e artefactos, mas sobretudo pela inovadora forma de exibir e interpretar os objectos utilitários que as compõem, recorrendo a artistas plásticos como Donald Judd ou James Turrell para o desenho das suas salas de exposição. Uma natural instituição-chave no design austríaco e europeu, o museu mostrou este ano o primeiro protótipo da Solar Tree, um sistema de iluminação urbana alimentado por energia solar encomendado ao designer britânico Ross Lovegrove. Também a feira de mobiliário, moda e joalharia BLICKFANG teve lugar no museu, durante a última das 3 semanas do design. Esta plataforma para jovens designers, este ano com mais de 140 expositores, contou este ainda com Portugal como país convidado, representado por um total de 10 designers portugueses – entre os quais Hugo da Silva, Inês Sobreira, Lara Torres, e Marco Sousa Santos.

Passionswege
Estes “Caminhos da Paixão” formam o elemento de ligação de todo o programa da Vienna Design Weeks: transeuntes, curiosos e “amantes do design” são surpreendidos com instalações em lojas e outros estabelecimentos comerciais, pontos que formam percursos dentro do centro da cidade. Cada loja/empresa é convidada pelos três comissários da VDW a trabalhar com um dos dez designers seleccionados para um projecto especial, lançado esta semana na sua montra: o novo e o tradicional juntam-se de uma forma descomprometida no espaço público (como na pastelaria DEMEL), e fora do contexto museológico. E se isso não fosse suficiente, tem provado ser um excelente primeiro contacto entre pequenas empresas tradicionais, como a Lobmayr (cristal), a Riess (esmalte) ou a Köchert (joalharia) e jovens designers como os For Use, POLKA ou Robert Rüf.

Hofmobiliendepot Design 10
Os dez designers participantes dos Passionswege são convidados a reinterpretar uma das peças do Hofmobiliendepot, a Colecção Imperial de Mobiliário. Procurando nos depósitos de uma das maiores colecções de mobiliário do mundo, provocam o diálogo entre móveis antigos e as suas próprias criações.

www.viennadesignweek.at

Escrito para o suplemento P2 do jornal Público em Novembro de 2007. Considerado como “aborrecido” pela editora deste suplemento, a mesma que acredita que “toda a gente sabe que Viena é uma das cidades mais cultas da Europa”.


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