Na noite de sábado passado, mais de 500 pessoas, incluindo boa parte do “establishment” do design e da arte de Lisboa, deslocou-se a uma recém-inaugurada galeria do bairro de Alvalade para assistir ao lançamento de uma mala. Um acontecimento invulgar no contexto do design português, mas nada de surpreendente quando falamos do designer que está por trás deste objecto, e de todas as suas estratégias.
Miguel Rios é um nome indissociável da história recente do design, e sobretudo do design de moda, em Portugal. Com formação nestas áreas no Porto e em Milão, tem vindo a trabalhar em Portugal desde o início dos anos 90 como consultor, comissário e designer de vestuário. É desde essa altura consultor do Centro Português de Design para as áreas de moda e de produto, tendo vindo a comissariar/coordenar várias exposições, projectos e publicações, trabalhando principalmente na ligação entre os designers e a indústria. Foi também neste campo que colaborou entre 2002 a 2005 com a Moda Lisboa, como responsável pela ligação entre a Moda Lisboa e as marcas/empresas da indústria têxtil nacional, e como coordenador da plataforma “Sangue Novo”, que promoveu entre 1992 e 2003 jovens designers de moda junto da imprensa, público e indústria.
Vestuário vs. Moda
E é exactamente à indústria têxtil e do vestuário que Rios tem dedicado a sua carreira nos últimos anos. Esta é uma área do design que geralmente associamos à moda, no sentido em que é a moda que rege, sazonalmente, a forma como são projectadas, exibidas, comercializadas, interpretadas e vestidas as peças de roupa que usamos todos os dias. Mas nem todo o vestuário é – ou não é directamente – influenciado pela moda, mesmo sendo regido por exigências e condicionantes do dia-a-dia. Tendo já projectado fardas para instituições como a Culturgest ou a ANA – Aeroportos de Portugal, e colaborado no projecto de uniformes para as polícias portuguesa e angolana – para qual trabalhou num colete à prova de bala e trauma para operações anti-motim, manutenção de paz e ordem pública – Rios tem vindo desde 2002 a concentrar a sua atenção e pesquisa não só nas questões formais das peças de roupa, mas cada vez mais na introdução e adaptação de tecnologia no vestuário e na sua relação com o corpo do indivíduo que o usa: “Os meus interesses nesta área de aplicação do design passam exactamente pela abordagem (…) ao conforto das peças de vestuário e aos materiais, principalmente aquelas utilizadas em meios urbanos. São peças interessantíssimas do ponto de vista da aplicação dos conhecimentos do design de vestuário, da ergonomia, do estudo da tecnologia da confecção ou da aplicação de materiais, até da análise do preço. Independentemente da função a que se destinam, dá-me imenso prazer pensar no destinatário final e desenvolver alternativas, em que a comodidade e funcionalidade são o foco da minha atenção. Mais do que o meramente estético ou decorativo.”
Um Uniforme para um Presente Ameaçado
Se no seu trabalho é dada primazia à função sobre a vertente estética, as duas parecem ser muitas vezes influenciadas por visões de um presente ou futuro distópico, pois são frequentes em vários dos seus projectos referências a protecção – física e química – dos indivíduos face ao seu entorno, humano ou ambiental, e em circunstâncias por vezes extremas, nas quais a própria sobrevivência do utilizador é posta em causa. I-Garment, um uniforme inteligente para combate a incêndios florestais, é um desses projectos. Desenvolvido desde 2003 em consórcio com a empresa Ydreams e o Instituto de Telecomunicações (Pólo de Aveiro), ganhou o primeiro projecto para a European Space Agency (ESA). Este complexo uniforme – cuja prototipagem tem sido desenvolvida pelas empresas portuguesas LousaFil e Iberomoldes – é composto por um fato de duas peças, mochila incorporada e um sistema de bolsos funcionais, em que são aplicados materiais compósitos de alta resistência térmica e estabilidade mecânica. Para além das peças de vestuário, o uniforme integra ainda elementos como sensores, telecomunicações e desenvolvimento de interfaces para dispositivos móveis (PDA, PC, Portáteis e SmartPhones). Variáveis como maleabilidade dos materiais aplicados ao nível de forros e tecido(s) externo(s), abotoaduras, sistema de regulação da temperatura do corpo, manuseamento, utilização de tecidos inodoros, anti-bacterianos e hidrófilos foram tidas em conta no projecto. Tendo como entidade de referência o Serviço Nacional de Bombeiros e Protecção Civil, este fardamento encontra-se agora em fase final de desenvolvimento, tendo já passado nos testes no terreno. O consórcio prepara-se para o apresentar brevemente no European Space Research and Technology Centre, em Amsterdão.
Um Produto para um Futuro Informado
O tempo de projecto de Miguel Rios – mais uma vez na contracorrente da moda – é tão longo quanto a complexidade dos sistemas que cria e explora o exigem. Prova disso é o System 2k07, a que deu início há dois anos, e que apenas agora teve a sua primeira apresentação. A partir de apenas sete componentes, este “sistema aberto de design” permite a construção de cinco tipologias de malas/contentores – Box, Laptop, Pocket, Portfolio e Street – que são variações do mesmo conjunto de elementos. Através de um conjunto de instruções e de engenhosos “interfaces” como fechos/zips, velcros e passadores, é dada ao utilizador a possibilidade de adaptar ele próprio o objecto às suas necessidades e mobilidade, assim como agregar/substituir outras valências – como o capuz Drizzle System, que terá no futuro uma gabardine acoplada. Pensado para o crescente mercado de acessórios de transporte e de viagem (bolsas, sacos de transporte, malas de viagem), e de acordo com os binómios conforto/protecção, representação/comunicação e funcionalidade/moda, este produto destina-se ao que o gabinete Miguel Rios Design (MRD) chama público “’E & I Addicted’: viciados, entusiastas, simplesmente admiradores ou apreciadores de produtos electrónicos e inteligentes. Pessoas inseridas na cultura global e urbana, atentas aos desenvolvimentos tecnológicos dos quais são experimentadores e utentes inaugurais.” Por outras palavras, este é um produto exigente para consumidores ainda mais exigentes, uma espécie de ferramenta de sobrevivência para uma sociedade que ainda desconhecemos. Quando temos contacto com ele – desde a forma dos elementos à tacteabilidade dos tecidos, da linguagem gráfica ao vídeo de apresentação – conseguimos compreender que é parte de uma estratégia maior, e resultado de um longo e depurado processo de trabalho. E uma parte importante deste trabalho pertence à Costa & Tavares, a empresa de São João da Madeira que está a desenvolver toda a estratégia comercial e gama de sistemas e produtos: “…o System 2k07 resulta do esforço quer da MRD, quer da empresa produtora, tendo em vista um ponto comum: torná-lo numa realidade comercial, para um mercado informado. Mesmo que essa realidade ainda não seja imediata ou em grande escala. Mas se hoje conseguir colocar à venda um produto em escala reduzida, porque não pensar que amanhã o mercado não se desenvolve e não contribuirá para o crescimento do produto e por conseguinte da MRD e da nossa empresa parceira?”.
Um Sistema de Interpretação
Contudo, a realidade comercial e industrial que gere a disciplina do design não condiciona totalmente o processo de trabalho de Miguel Rios: isso está bem patente no lançamento do System 2k07, promovido em conjunto por três galerias/agências de arte de Lisboa. Esta apresentação, composta por uma performance da autoria de Ricardo Jacinto e André Murraças, e por uma peça “bebível” de Hugo Brito, levanta à primeira vista questões sobre a cada vez mais falada ligação entre o design e arte – que deixaremos para outras páginas. Para Rios, o que importa é a interpretação do sistema por si criado, e respectivo consumo: “…para além de curador de uma colecção de arte contemporânea, é também nesta que encontro as minhas grandes referências. Digo ‘também’, porque o acto criativo de um objecto ou produto como é o System 2k07, com base num raciocínio lógico, resulta do esforço de um trabalho de equipa, e, portanto, é influenciado por vários intervenientes. (…) É por isso que a razão de ter reunido artistas plásticos no lançamento do System 2k07 prende-se com o facto de neles encontrar a expressão ideal para a transmissão do raciocínio que está por detrás do projecto em si. Quando lhes lancei o repto, fui claro nos contornos da contextualização do produto: a ideia era a criação de uma linha de montagem, perfeita, de uma qualquer sociedade distópica, tão presente quer na minha imagética, através do cinema e da literatura, quer da minha profissão que se confronta periodicamente com problemas empresariais, com sistemas de produção.” E é aí que Rios mostra que por vezes a “arte” e a “arte aplicada” se encontram separadas apenas por um lance de escadas: “O System 2k07 é um sistema que resulta realmente de uma linha de montagem, não só aquela que o manufactura, que o forma como produto, mas também por todos os passos da sua criação e desenvolvimento, até chegar a um protótipo e produto final. (…) tanto o Ricardo Jacinto, como o André Murraças, (…) interpretaram e entregaram-se, por forma a criar uma instalação e uma série cíclica de movimentos que tinham como fim a apresentação da construção lógica do System 2k07. Enquanto na sala de cima do Appleton Square se pôde ver a teatralização do produto, em que o público tinha um relacionamento mais distante com ele, já na sala de baixo era imperativo que esse mesmo público pudesse manuseá-lo, entendê-lo como algo realmente tangível. E só estavam designers a apresentá-lo, numa linguagem corrente, quer através das minhas colaboradoras mais directas, quer através da visualização do vídeo do designer Hélio Oliveira. Todo o público é potencial comprador e o System 2k07 é isso mesmo, tangível. (…) um público das artes esteve presente, mas também ele é consumidor. E os outros públicos constituídos por designers, marketeers, empresários ou amigos, para além de assistirem e discutirem um produto de design, e o terem encomendado [o preço de cada uma das 300 malas que compõem esta edição limitada é de apenas €170,-], contactaram com arte. E esse cruzamento foi extremamente interessante, porque o centro das atenções foi o System 2k07.” Este primeiro passo abriu o caminho para os seguintes avanços da sua estratégia: até ao fim de Novembro decorrerá o primeiro teste do produto no mercado nacional, e no primeiro trimestre de 2008 no mercado internacional. Paralelamente, está a ser preparada a edição de um livro documental a lançar em Março, que conta com o apoio das galerias Cristina Guerra Art Contemporary, Vera Cortês – Agência de Arte, e Appleton Square.
O Grande Passo em Frente
Outro dos objectivos da apresentação de sábado foi o lançamento oficial do gabinete Miguel Rios Design. O culminar da experiência adquirida ao longo de 20 anos levou-o a tomar a decisão de o fundar em 2002, para que pudesse, segundo ele, “pôr em prática o seu pensamento projectual e enfrentar novos desafios”. Afirmando-se no mercado como uma alternativa ao que chama “smart & clever products” e “I-wear”, foca a sua atenção “na temática do vestuário enquanto objecto e a sua questionável evolução, face a uma melhor racionalização e adaptação do indivíduo ao meio tecnológico por si criado”. É composto por uma pequena e jovem equipa de designers, movidos por uma estratégia comum: “Como ‘head designer’ e dono da MRD é imperativo, em termos de funcionamento interno do gabinete, que qualquer colaborador sinta que o projecto é resultado de todos os intervenientes. Fazemos reuniões periódicas, para confronto de ideias ou definição de estratégias. No entanto, cada um de nós tem um papel específico, sendo determinante para o bom desenvolvimento e consolidação dos projectos que temos em mãos. Até onde podemos ir, não sei, mas pretendo que a MRD constitua uma alternativa no mercado internacional, com a edição de produto próprio.”
O System 2k07 pode ser visto na Galeria Appleton Square até dia 20 de Outubro
Horário: De 14 a 20 de Outubro, das 14H00 às 19H00 Rua Acácio Paiva, 27, r/c 1700-004 Lisboa Tel: 21 099 36 60
Publicado originalmente no suplemento Ípsilon do jornal Público de 19.10.2007
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