O Equilibrista

Pertence a uma comunidade de pessoas que agrega “categorias” tão variadas como “designers” de comunicação, de produto, de moda ou de joalharia, ilustradores, fotógrafos ou realizadores. Rui Tenreiro inaugura uma série que hoje começamos a publicar sobre designers portugueses.

Na resposta à pergunta: “O que andas a fazer agora?”, Rui Tenreiro dá oito pistas. Está a acabar as ilustrações para o seu próximo livro a ser publicado no Canadá, e duas BDs, a primeira que terá a sua própria banda sonora, a segunda que será sobre contos e fábulas para crianças. Foi convidado para participar num outro livro de uma editora de Hong Kong, numa antologia de BD finlandesa e numa exposição para uma galeria em Londres. Além disso, procura alguém que o ajude a gerir a sua editora, e vai ocupar-se do design e ilustração de uma colecção de moda que será lançada para o ano na África do Sul.

Esta extensa resposta chega por email de Moçambique, a sua terra natal, onde passa férias, antes de regressar a Joanesburgo, a cidade em que vive com a namorada norueguesa. Até agora tudo isto pode confundir o mais atento leitor, mas ele consegue tornar a coisa ainda mais complexa. À pergunta “Quando é apresentado a alguém e tem de dizer o que faz, o que é que diz?”, responde que a descrição do seu trabalho é em primeiro lugar “ilustração”, mas que na verdade não se sente totalmente à vontade com essa profissão, mesmo que esta seja a categoria mais fácil onde incluir o trabalho que tem feito ao longo dos anos.

Embora a sua fotografia tenha um ar “retro”, Rui Tenreiro é um homem do seu tempo: pertence a um grupo de pessoas que, através de vários meios, suportes, veículos, contextos, procura formas de expressão para a sua maneira particular de ver o mundo. Esta comunidade de profissionais, que agrega “categorias” tão variadas como “designers” de comunicação, de produto, de moda ou de joalharia, ilustradores, fotógrafos ou realizadores, e que observa, interpreta e dá forma a um mundo visual e material cada vez mais complexo.

A forma aqui é tomada no seu sentido mais imediato: estas são as pessoas que identificam, pensam e projectam os objectos que nos rodeiam, as mensagens que nos são veiculadas, as palavras que lemos, as roupas que vestimos no quotidiano. Aplicam o seu talento e criatividade dentro das esferas do comércio e da indústria — incluindo a “indústria da cultura” — reinventando e actualizando diariamente um termo que ganhou corpo durante a Revolução Industrial: as “artes aplicadas”. Desde o século XIX que gerações de indivíduos, com e sem formação artística, servem as necessidades da economia, do “mercado” — que por sua vez serve, e frequentemente cria, as necessidades de todos nós — aplicando critérios estéticos e contextos a objectos, produtos e veículos de comunicação, a partir da identificação dessas necessidades e da formulação de respostas para elas.

Referências populares
Esta noção de “artista aplicado” está presente ao longo do percurso profissional de Rui Tenreiro: nascido em Maputo em 1979, mas com nacionalidade portuguesa, viveu e estudou em Lisboa antes de ir para Joanesburgo, onde tirou o curso de direcção de arte numa escola de publicidade. Mais tarde, e depois de trabalhar em animação para publicidade na África do Sul, regressou ao Hemisfério Norte, onde, no Kent Institute of Art & Design, aprendeu a trabalhar com animação em filme Super 8 e descobriu também vários métodos de impressão. Durante este período no Reino Unido viu no livro a principal via para mostrar o seu trabalho, mas só mais tarde, em Oslo, lançou a primeira obra e fundou a sua editora, a Soyfriends.

Ilustrações para pacotes de Leite Tine. Foto: Øyvind Bjørkum
Pacotes de Leite TINE: As ilustrações para o leite mais bebido na Noruega, TINE Melk, são o trabalho comercial mais reproduzido e prestigiado de Rui Tenreiro. Feitas ao longo de um ano a partir de vários temas, desde a história da distribuição de leite no país às peças do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen, mostram que até os mais insuspeitos dos suportes, como um pacote de leite, podem ser enriquecidos com ilustrações e narrativas. Foto: Øyvind Bjørkum

É mesmo na Noruega — onde viveu entre 2003 e 2006 — que, segundo ele, a maior parte das coisas se passam: começou a trabalhar como artista e ilustrador “freelance”, integrando a dinâmica “cena” do design gráfico e ilustração norueguesa, e participou em vários projectos independentes de “fanzines”, revistas, exposições e outros projectos colectivos, mas sem deixar de parte a vertente comercial da ilustração e do design gráfico. Mantém clientes mais antigos da África do Sul para os quais trabalha à distância, e conquista clientes locais, tanto a nível editorial, como a nível empresarial, um dos quais a marca de leite mais popular da Noruega. Tanto os seus livros, como as suas ilustrações comerciais, são desde então alvo de atenção em vários “media”, e vencem prémios e distinções, na Noruega e no estrangeiro, dos quais se destacam um artigo sobre o seu trabalho na revista britânica “Dazed & Confused” e uma ilustração para a também britânica “Amelia’s Magazine”.

Chapel Oak
Chapel Oak: Esta ilustração para a revista britânica “Amelia’s Magazine”, feita a partir de uma capela numa árvore em França, foi até agora o objecto que mais exposição teve para Rui Tenreiro, tendo sido reproduzida pela revista num cartaz colectivo de árvores, e ainda em T-shirts e sacos.

O intrincado universo de Rui, construído a partir de desenhos feitos à mão, conscientes das técnicas de colagem digital, evoca referências da nossa cultura popular que vão da “Guerra das Estrelas” ao imaginário victoriano, através do que muitas vezes parece – mas não é – um olhar infantil. Uma espécie de gabinete de curiosidades em papel, onde pássaros e formas geométricas imperfeitas convivem com humanos e os seus estranhos comportamentos, que se transforma e adapta aos vários meios onde ganha forma: se através dos seus livros o autor mostra partes do seu universo pessoal, as suas graficamente ricas e ambíguas ilustrações acrescentam à comunicação empresarial um toque humano e pessoal cada vez mais necessário.

No entanto, será o estatuto de “artista aplicado” suficiente para ele? “Nunca tive fortes ambições de expor formalmente em galerias, mas ultimamente tenho recebido vários convites. Não tenciono fazer esforço em me tornar ‘artista’ no sentido mais tradicional da palavra. Procuro sempre responder a impulsos, e se esses coincidirem com os de um artista ‘de pleno direito’, isso não será um obstáculo, creio. A arte mais formal é também comercializável, noutra esfera e de uma forma totalmente diferente da ‘pop culture’. Portanto, sim, porque não?”.

De casa para todo o mundo
A questão do impulso de que Rui fala é importante: enquanto um “artista aplicado” terá a responsabilidade de responder a um enunciado ou a uma necessidade externa, essa preocupação não é exigida aos indivíduos que operam estritamente no universo das “belas artes”, pois o seu trabalho, regido por um conjunto diferente de restrições, leituras e contextos, resulta grosso modo de respostas a questões colocadas pelo próprio indivíduo. Eles são os geradores do seu próprio conteúdo, por assim dizer, enquanto os artistas aplicados dão forma (e acrescentam) a um conteúdo de terceiros.

As fronteiras entre um e outro são, porém, cada vez mais ténues: conceitos como “arte” e “arte aplicada”, “cultura erudita” e “cultura popular”, “economia” e “academia”, “geografia” e “tecnologia” revelam-se insuficientes para categorizar o universo global da criação material e visual. Esta é agora, acima de tudo, a fonte para uma das maiores necessidades do mundo em que vivemos: a procura de conteúdo, talvez mesmo a procura de identidade, traduzível em imagens e artefactos. Do último modelo da Ferrari às roupas desenhadas por Madonna para a H&M, da imprensa escrita ao YouTube, das capas de discos e revistas de moda às galerias de arte, da “indústria do entretenimento” à “indústria da propaganda”, o potencial mercado de um artista, mas especialmente de um artista aplicado, é incomensurável. Daí que, face ao turbilhão de possibilidades, muitos destes criadores transcendam barreiras culturais, linguísticas e geográficas e optem por explorar um nicho, área ou especialização, para o qual encontrarão uma “network” de pessoas que partilham dos seus valores; no fundo, trabalham a sua própria identidade e aplicam-na em contextos nos quais se possam expressar.

Soyfriends: Rui Tenreiro fundou a Soyfriends em 2005, uma editora independente de “fanzines” e livros, distribuindo livros de artistas, sobretudo escandinavos, que não são distribuídos em outros circuitos comerciais. Integrou a exposição “Kiosk: Modes of Multiplication”, exposição itinerante sobre a realização e distribuição de diferentes formas de práticas artísticas. Para Rui Tenreiro o livro é “objecto de arte indivisível, não só algo que se possa ver numa galeria. Tem de ser o objecto que reúne as condições todas para proporcionar a experiência da melhor forma (formato, cores, tipo de papel, número de páginas e qualidade de impressão). O livro é, em si, o objecto de arte.” Foto: Øyvind Bjørkum

Para Rui Tenreiro, meio-moçambicano, meio-português, a própria noção de identidade é estranha, e não é o sítio de onde vem ou onde vive que o completa: para ele, “a personalidade e o trabalho de uma pessoa deveriam servir como medida de quem a pessoa é, ao invés de se recorrer a clichés”. E, mais uma vez, ele recusa-os: em Joanesburgo trabalha desde casa para todo o mundo, fazendo ilustrações para publicidade, jornais e livros escolares sul-africanos, escrevendo elaboradas narrativas para as suas obras, vendendo os livros dos outros pela Soyfriends, e experimentando novas formas de exprimir o seu universo. No futuro, não sabe onde irá viver. Talvez volte à Noruega, ou até a Portugal, ou outro sítio qualquer. Encontra o seu equilíbrio entre encomendas que “pagam a renda”, uma extensa rede de amigos e clientes (MySpace incluído), e explorações mais livres de processos, meios e significados, desafiando as nossas noções de ilustrador, designer e artista, e chamando a nossa atenção para as formas e palavras que vemos todos os dias.

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Publicado originalmente no suplemento Ípsilon do jornal Público de 30.03.2007